Antoine Berman: para além do albergue do longínquo
Simone Petry (UFSC) e Mauricio Cardozo (UFPR), editores convidados.
(English and French follows/Versions en anglais et en français suivantes)
O modo de circulação e recepção do pensamento teórico-crítico é um tema amplo e complexo, ao qual o campo dos Estudos da Tradução dedicou, até o presente momento, uma atenção apenas muito discreta. Não há dúvida de que muitos são os fatores que determinam a sua disseminação. E se podemos presumir que certos aspectos, como a publicação em veículos de menor ou maior abrangência, o apoio institucional (ou a falta deste) e a adesão ou resistência a tendências dominantes, entre outros, possam contribuir de modo significativo para a sua recepção, a língua em que esses trabalhos são escritos originalmente está longe de ser uma questão menor. Como bem sabemos, trabalhos em língua inglesa alcançam, não raro, uma disseminação em escala global, em grande medida, também, devido à presença estruturante dessa língua nas redes de disseminação do conhecimento mundo afora. O mesmo não parece ocorrer, nem na mesma escala nem na mesma frequência, com trabalhos escritos originalmente em outros idiomas que não o inglês: sua circulação pode se dar de modo bastante heteróclito, desenhando cenas de recepção muito distintas de língua para língua, país para país, seja em razão da diferença do impacto de sua obra em contextos diferentes, seja em razão do recorte particular de sua obra que ganha maior ou menor destaque em cada uma de suas cenas de recepção.
Este parece ser o caso de um autor como Antoine Berman (1942-1991), como apontam as diferentes caracterizações que dele são feitas, em cada língua, mesmo numa página de vulgarização do conhecimento na internet como a Wikipedia: em língua francesa, trata-se de um linguista, teórico da tradução e tradutor do alemão e do espanhol (para o francês); em língua alemã, trata-se de um crítico literário, filósofo e teórico da tradução; em língua inglesa, trata-se de um tradutor, filósofo, historiador e teórico da tradução. Se a faceta de teórico da tradução se repete em todas elas – como poderíamos esperar –, é notável como algumas dessas facetas só parecem se revelar em determinadas línguas: a de linguista, em francês; a de crítico literário, em alemão; e a de historiador, em inglês.
Por certo, é preciso ir muito além dessa impressão para se poder detalhar as diferenças da recepção da obra de Antoine Berman em contextos como o de língua francesa, de língua alemã, de língua inglesa, de língua portuguesa, entre outros. Mas não é preciso ir tão longe para constatar que a diferença existe e não é irrelevante. Se em alguns desses contextos a recepção de sua obra ainda é muito discreta e episódica – como podemos arriscar dizer que é o caso de sua recepção, por exemplo, em língua alemã –, em outros contextos a recepção de sua obra é cada vez mais abrangente e produtiva, incluindo até mesmo o recente interesse por seu trabalho anterior ao envolvimento com a tradução – como é o caso do contexto brasileiro e de pesquisas que estudam as relações de Berman com a América do Sul. Por sua vez, também são consequentemente muito distintos a imagem e o lugar desse autor, assim como o impacto de sua obra na pesquisa e no pensamento sobre a tradução em cada um desses contextos, fazendo com que, de um ponto de vista de confronto dessas diferentes cenas de recepção, Antoine Berman se projete, ao mesmo tempo, como um autor de grande importância e centralidade (no Brasil) ou relativamente obscuro e marginal (no mundo germânico), para citarmos aqui apenas um exemplo.
E mesmo ao concentrarmos a atenção num único desses contextos de recepção, como o brasileiro, tampouco podemos falar de uma recepção que se dá de modo homogêneo. Se para muitos a imagem da obra de Berman ainda hoje se reduz ao que se apresenta em suas obras de maior circulação, como em A prova do estrangeiro (1984) e em A tradução e a letra ou o albergue do longínquo (2007), alguns pesquisadores vêm se empenhando em repensar essa imagem a partir das várias republicações mais recentes de sua obra, como em L’âge de la traduction (2008), Jacques Amyot, traducteur français (2012), Cartas para Fouad El-Etr (2018), entre outras. É possível que o fato de Antoine Berman ter nos deixado precocemente (aos 49 anos de idade), sem ter tido a oportunidade de reorganizar, complementar, ampliar, reelaborar e/ou redirecionar sua produção (na maior parte dos casos, publicada esparsamente na forma de ensaios e artigos), contribua de modo significativo para esse caráter heterogêneo de sua recepção. De toda sua obra, apenas sua tese de doutorado (A prova do estrangeiro, 1984) foi publicada por ele, em vida, como livro. Os demais livros de sua autoria, embora sigam suas orientações gerais, foram todos organizados e publicados postumamente.
Para marcar a efeméride dos 30 anos de morte do autor com um gesto de retorno a sua obra, esta edição de número 30 da Tradução em Revista (2021/01) gostaria de acolher trabalhos interessados em refletir centralmente sobre o pensamento de Antoine Berman (com especial atenção aos seus desdobramentos nos eixos de uma ética, de uma analítica e de uma histíria da tradução), bem como sobre seus diversos modos de presença, seus lugares diferentes em diferentes contextos de recepção e seus impactos na pesquisa e na reflexão contemporâneas que têm a tradução por objeto.
Antoine Berman: beyond l’auberge du lointain
Antoine Berman: au-delà de l’auberge du lointain
Antoine Berman: Beyond l’auberge du lointain
Simone Petry (UFSC) e Mauricio Cardozo (UFPR), guest editors.
The mode of circulation and reception of theoretical-critical thinking is a complex and vast topic to which Translation Studies has so far paid very little attention. Clearly, many are the factors that determine its dissemination. And if it is possible to assume that certain aspects may significantly contribute to its reception, such as diffusion in wide- or narrow-audience publications, institutional support, and the adhesion or resistance to dominant trends, the language in which such works are originally written is not a minor issue. As we well know, works written in English tend to reach a global public, largely due to the structuring presence of this language in worldwide networks of knowledge dissemination. The same phenomenon does not seem to occur in terms of scale or frequency with works originally written in languages other than English: their circulation may be quite spotty, depending on the language and on the country, due either to the different impact of the work in different contexts, or to the particular angle of the work that attracts more or less attention in different publics.
This seems to be the case of an author such as Antoine Berman (1942-1991), as is indicated by the different ways he is presented even on such a general-information website as Wikipedia: in the French version, he is a linguist, a translation theoretician, and a translator from German and Spanish into French; in German, he is presented as a literary critic, a philosopher, and a translation theoretician; in English, he is a translator, a philosopher, a historian, and a translation theoretician. Whereas his work as translation theoretician is highlighted in every language—as it should be expected—it is worth noting how some of his other facets only seem to be visible in particular languages: a linguist, in French; a literary critic, in German.
It is certainly necessary to go far beyond this impression in order to specify the differences in reception of Antoine Berman’s work in French-language, German-language, English-language, and Portuguese-language contexts, among others. But one does not have to go so far to verify that the difference exists and is not irrelevant. If in some of these contexts the reception of his work is still very slight and uneven—as it seems to be the case in German, for instance—in other contexts it is increasingly wide and productive, even including newly arisen interest in his work prior to his involvement with translation—as is the case of the Brazilian context and of research on Berman’s relations with South America. Consequently, Berman’s image and standing are also quite distinct, as is the impact of his work on translation research and theory in each of these contexts. As a result, from the perspective of a clash of these different, contexts of reception, Antoine Berman may be seen, at the same time, as an author of central importance (in Brazil) or a relatively obscure and marginal one (in the German world), for example.
And even if we focus on only one of these reception contexts, the Brazilian one, we are not dealing with a homogeneous reception. If for many readers the image of Berman’s work is limited even today to his works of wider circulation, such as L’épreuve de l’étranger (1984) [The Experience of the Foreign] and La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain (2007), some researchers have been refashioning this image in the light of the several more recent republications of his work, such as L’âge de la traduction (2008), Jacques Amyot, traducteur français (2012), and Lettres à Fouad El-Etr sur le romantisme allemand, among other titles. The fact that Berman was only 49 when he died, and therefore had no opportunity to reorganize, complement, expand, reelaborate, and/or redirect his production (for the most part, sparsely published in the form of essays and articles), may have contributed significantly to the heterogeneous character of his reception. Of all his works, only his doctoral dissertation (L’épreuve de l’étranger, 1984) came out as a book during his lifetime. The other books he authored, although they follow his general directions, were all organized and published posthumously.
In order to celebrate the 30th anniversary of Antoine Berman’s death Tradução em Revista 30 (Jan.-Jun. 2021) welcomes contributions that discuss his legacy, with particular focus on its breakdown into three main axes, namely, translation ethics, translation analytic and translation history, as well as on his diverse modes of presence, his different places in different reception contexts, and his impact on contemporary lines of research and reflection in the field of translation.
Contributions must follow the journal guidelines and must be submitted until 20 February 2021 through the journal’s online submission site, at (http://www.periodicosmaxwell.vrac.puc-rio.br/index.php/TREV)
Simone Petry (UFSC) e Mauricio Cardozo (UFPR), éditeurs invités.
Le mode de circulation et de réception de la pensée théorico-critique est un thème vaste et complexe auquel le domaine de la traductologie (Translation Studies) n’a consacré jusqu’à présent qu’une attention très discrète. Il ne fait aucun doute que nombreux sont les facteurs qui déterminent sa dissémination. Et si l’on peut présumer que quelques aspects tels que sa diffusion dans des publications à portée plus ou moins étendue, l’appui institutionnel (ou son absence) et l’adhésion ou la résistance aux tendances dominantes, entre autres, peuvent contribuer significativement à sa réception, la langue dans laquelle ces travaux sont rédigés est loin d’être une question secondaire. Comme nous le savons tous, les travaux écrits en anglais atteignent souvent un rayonnement à l’échelle mondiale en grande partie aussi en raison de la présence structurante de cette langue dans les réseaux de diffusion de la connaissance du monde entier. Cela ne semble se produire ni en termes d’échelle ni de fréquence avec des travaux rédigés originellement dans d’autres langues que l’anglais : leur circulation peut être assez hétéroclite et tracer des scènes de réception très distinctes d’une langue à l’autre, de pays à pays, soit en raison de la divergence d’impact de ces œuvres dans différents contextes, soit en raison de leur découpage particulier qui gagne une plus ou moins grande importance dans chacune de leurs scènes de réception.
Cela semble être le cas pour un auteur comme Antoine Berman (1942-1991), comme le soulignent les différentes caractérisations qui lui sont attribuées en chaque langue. Pour prendre un exemple, dans une page de vulgarisation des connaissances en ligne telle que Wikipédia : en langue française, il s’agit d’un linguiste, théoricien de la traduction et traducteur de l’allemand et de l’espagnol (en français); en langue allemande, il s’agit d’un critique littéraire, philosophe et théoricien de la traduction; en langue anglaise, il s’agit d’un traducteur, philosophe, historien et théoricien de la traduction. Si cette facette de théoricien de la traduction se répète dans toutes les langues – comme nous pourrions nous y attendre –, il est remarquable que quelques-unes de ces facettes ne se révèlent que dans certaines langues : celle de linguiste en français; celle de critique littéraire en allemand ; celle d’historien en anglais.
Certes, il faut aller très au-delà de cette impression pour pouvoir détailler les différences dans la réception de l’œuvre d’Antoine Berman dans des contextes comme celui de langue française, de langue allemande, de langue anglaise, de langue portugaise, parmi d’autres. Mais il ne faut pas aller si loin pour constater que des différences existent et qu’elles ne sont pas négligeables. Si dans quelques-uns de ces contextes, la réception de son œuvre est encore très discrète et épisodique – comme nous pouvons nous hasarder à dire que c’est le cas de sa réception en langue allemande – dans d’autres contextes, la réception est de plus en plus large et productive, comprenant même l’intérêt récent pour son travail antérieur à son implication dans la traduction – comme dans le contexte brésilien où il y a des recherches qui étudient les relations de Berman avec l’Amérique du Sud. Dès lors, l’image et l’espace qu’il occupe tout autant que l’impact de son œuvre dans la recherche et la pensée sur la traduction dans chacun de ces contextes sont très divers, ce qui fait que du point de vue de la confrontation de ces différentes scènes de réception, Antoine Berman soit vu à la fois comme un auteur central de grande importance (au Brésil) ou relativement obscur et marginal (dans le monde germanique) pour ne citer ici qu’un exemple.
Et même si nous concentrons notre attention sur un seul contexte de réception, comme celui du Brésil, nous ne pouvons pas non plus parler d’une réception homogène. Si pour beaucoup l’image de l’œuvre de Berman se réduit encore aujourd’hui à ce qui se présente dans ses ouvrages de plus grande circulation, comme L’épreuve de l’étranger (1984) et La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain (2007), quelques chercheurs se consacrent à repenser cette image à partir de plusieurs republications plus récentes de son œuvre comme <,>L’âge de la traduction (2008), Jacques Amyot, traducteur français (2012), Lettres à Fouad El-Etr (2018), parmi d’autres. Il est possible que la mort prématurée d’Antoine Berman, à l’âge de 49 ans, sans que celui-ci ait pu se réorganiser, faire des ajouts, élargir, réélaborer et/ou redirectionner sa production (publiée en grande partie de façon éparse sous forme d’essais et d’articles), contribue de manière décisive au caractère hétérogène de sa réception. Une seule de ses œuvres a été publiée comme livre de son vivant, L’épreuve de l’étranger (1984), sa thèse de doctorat. Les autres livres de l’auteur, bien que suivant ses orientations générales, ont tous été organisés et publiés après sa mort.
Comme hommage au 30ème anniversaire de la mort de l’auteur, dans un geste de retour à son œuvre, l’édition nº 30 de Tradução em Revista (2021/01) aimerait accueillir des travaux intéressés centralement par la réflexion sur la pensée d’Antoine Berman (avec une attention particulière à ses dédoublements concernant une éthique, une analytique et une histoire de la traduction), ainsi que sur les divers modes de sa présence, les différents espaces occupés dans les différents contextes de réception et leur retentissement dans la recherche et la réflexion contemporaine ayant pour objet la traduction.