SOBRE

HURBINEK – Revista de Estudos Levianos – é uma publicação bianual do Centro Primo Levi/PUC-Rio, núcleo de pesquisa vinculado ao Instituto de Estudos Avançados em Humanidades, da mesma Universidade. É uma inciativa de caráter multidisciplinar, que tem como objeto publicar textos a respeito da obra do escritor italiano Primo Levi, assim como sobre a variedade de temas ali abrigados. HURBINEK pretende acolher contribuições que, além de considerar aspectos da obra leviana, e dado o caráter multifacetado da mesma, procurem estabelecer nexos e interlocuções com diversos aspectos da experiência contemporânea. Situado no âmbito amplo das Humanidades, HURBINEK, pelas próprias características do autor que lhe serve de referência, pretende manter interlocução com o campo da cultura científica. HURBINEK pretende, ainda, acolher, tanto quanto possível, além da vasta variedade de estudos a respeito da obra de Primo Levi, reeditar ensaios de difícil acesso ao leitor brasileiro e fora de circulação.


ESTUDOS LEVIANOS: A OBRA DE PRIMO LEVI

“Cada época tem seu fascismo; seus sinais premonitórios são notados onde quer que a concentração de poder negue ao cidadão a possibilidade e a capacidade de expressar e realizar a sua vontade. A isso se chega de muitos modos, não necessariamente com o terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana e a segurança de poucos privilegiados se baseava no trabalho forçado e no silêncio forçado da maioria” . Primo Levi, “Um passado que acreditávamos não mais voltar”, In: Primo Levi, A Assimetria e a Vida: artigos e ensaios, (Org. Marco Belpoliti), Tradução de Ivone Benedetti, São Paulo: Editora da Unesp, p. 56.

Primo Levi (1919-1987) celebrizou-se como escritor a partir da publicação do que viria a ser seu livro mais conhecido, É isto um homem?, cuja primeira edição foi lançada em 1947. Em 1958 uma nova edição ampliou o texto original, servindo de base para a amplíssima circulação da obra, tanto em âmbito italiano como internacional. O livro dá testemunho da experiência de seu autor no campo de Monowitz, um dos satélites do imenso complexo eliminatório de Auschwitz, entre março de 1944 e janeiro de 1945, para onde foi levado aos 24 anos de idade. Capturado pela milícia fascista, em fins de 1943, Levi fazia parte de um pequeno grupo de resistentes, ligados ao movimento antifascista Giustizia e Libertà, fundado pelo grande liberal italiano Piero Gobetti, morto em 1926, das sequelas de um atentado perpetrado pelos fascistas em Turim. O grupo foi capturado nas montanhas ao norte daquela cidade, conduzido a um campo de trânsito perto de Modena e ali posto sob o controle alemão. Levi foi posteriormente incluído em um comboio dirigido a Auschwitz com cerca de 600 judeus italianos, dos quais menos de vinte sobreviveram ao fim da guerra (1945).

Membro de uma família judaica assimilada e não religiosa, Levi nasceu e cresceu em Turim, cidade na qual se formou em Química, em plena vigência das Leis Raciais do regime fascista, que imprimiu em seu diploma a marca “químico de origem judaica”. Sua formação intelectual combinou traços de uma fortíssima cultura científica, que o levou à profissão de químico, com um forte ambiente humanístico, pela presença permanente da leitura dos clássicos italianos, com destaque para Dante, Leopardi e Manzoni.

Mais do que um autor ligado à chamada “literatura de testemunho”, Levi foi um escritor dotado de ampla envergadura literária, tal como reconhecido na ocasião do lançamento de seu primeiro livro, por ninguém menos do que Italo Calvino. Em grande parte de suas obras é visível o que o mesmo Calvino denominou como a “presença de um certo pathos lírico”. Com efeito, os primeiros escritos de Levi sobre o Campo tomaram a forma de poesias, um gênero que viria a praticar ao longo de sua carreira literária. Sua obra acabou por abarcar diversos campos e gêneros: textos diretamente ligados à experiência do campo de extermínio e da Shoah (tais como É isto um homem?, A trégua (1963) e Os afogados e os sobreviventes (1986), obras de literatura fantástica – gênero no qual se iniciaria em seu terceiro livro Histórias Naturais, de 1966 -, ensaios diversos publicados, livros de ficção – sua única obra abertamente ficcional Se não agora, quando?, de 1982 -, de semi-ficção, tal como o extraordinário A chave estrela, de 1978, além de duas obras estilisticamente indefiníveis: A tabela periódica, de 1975 e A procura das raízes, de 1981.

A primeira foi definida por Italo Calvino como “a mais primoleviana obra de Primo Levi”, e combina várias das facetas do autor, com destaque para a dimensão química, presente no ordenamento dos capítulos que correspondem a elementos da Tabela de Mendeleev. A Royal Institution, do Reino Unido, considerou em 2006 a obra como o mais importante livro de ciência já publicado até então. A procura das raízes, um dos poucos livros de Levi ainda não editados no Brasil, é fundamental para o entendimento da persona de seu autor, já que concebido como coletânea de estratos de autores que teriam sido co-autores de sua forma mentis, acrescidos de comentários introdutórios a cada um deles, de sua lavra.

Para além da copiosa produção escrita – livros, contos, ensaios, poesias, artigos para jornais -, Levi foi um grande “entrevistado”. Um dos volumes da edição italiana de suas Obras Completas foi dedicado a reunir suas entrevistas, um material também essencial para a composição do personagem. Mais do que entrevistado, um grande conversador, tal como revelam duas extraordinárias tertúlias por ele mantidas com o escritor Philip Roth e com o químico Tulio Regge (esta, ainda inédita em português brasileiro). Primo Levi amava conversar com os mais jovens, com os que não viveram a experiência do fascismo e da Shoah. Foi um inimigo encarniçado tanto do negacionismo como da insistente sobrevida do fascismo, mesmo após sua derrota em 1945. Sobre o fascismo, Levi deixou juízos memoráveis, tais como o aqui adotado como epígrafe.