A (des)invenção do Nordeste Roberto Azoubel
Este artigo discute o tema do regionalismo nordestino através da análise do A invenção do Nordeste e outras artes do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, livro basilar para compreensão e interpretação da produção artística e cultural realizada ao longo do século XX sobre a região. Propõe também a idéia de que uma outra concepção de regionalismo foi elaborada no Nordeste, tendo o Mangue, movimento cultural surgido durante os anos noventa na cidade do Recife, como principal difusor.
I.
        Este artigo ao mesmo tempo em que é um lamento é uma retomada. Lamento pois, ao desenvolver minha pesquisa para realização de tese em literatura brasileira, descobri que um dos livros basilares do meu trabalho está fora dos catálogos das editoras do país. Trata-se de A invenção do Nordeste e outras artes do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., obra de valor inestimável para a compreensão e interpretação da produção artística e cultural realizada sobre o Nordeste ao longo do século XX. É também retomada visto que proponho aqui, a partir do ponto até onde o livro abordou, a idéia de que uma outra concepção de regionalismo foi elaborada para a região, tendo o Mangue, movimento cultural surgido durante os anos noventa na cidade do Recife, como principal difusor.
“contribuirão decisivamente as obras sociológicas e artísticas de filhos dessa ‘elite regional’ desterritorializada, no esforço de criar novos territórios existenciais e sociais, capazes de resgatar o passado de glória da região, o fausto da casa-grande, a ‘docilidade’ da senzala, a ‘paz e estabilidade’ do Império. O Nordeste é gestado e instituído na obra sociológica de Gilberto Freyre, nas obras de romancistas como José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz; na obra de pintores como Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres etc. O Nordeste é gestado como espaço da saudade dos tempos de glória, saudades do engenho, da sinhá, do sinhô, da Nega Fulo, do sertão e do sertanejo puro e natural, força telúrica da região.” (Albuquerque Júnior, 1999:35)
        A partir dos anos 30, no entanto, os discursos emanados das obras dos artistas e intelectuais sobre o Nordeste se invertem: não sonham mais com uma volta ao passado, e sim com a construção do futuro. O “novo” Nordeste que emerge tem pendor esquerdista, sendo caracterizado pelos trabalhos que denunciam a região como um espaço onde predomina a miséria e a injustiça social e também como local de reação às transformações revolucionárias da sociedade. Para Durval, essa mudança se deveu a fatores como o crescimento urbano, que já se fazia notar em algumas cidades nordestinas; a conseqüente ampliação da classe média; e, como já assinalado acima, a difusão de correntes de pensamento crítico, em especial, o marxismo.
“O Nordeste, como território da revolta, foi criado basicamente por uma série de discursos acadêmicos e artísticos. Discursos de intelectuais de classe média urbana. Uns interessados na transformação, outros na manutenção da ordem burguesa. Por isso, são obras que partem, quase sempre, de um ‘olhar civilizado’, de uma fala urbano-industrial, de um Brasil civilizado sobre um Brasil rural, tradicional, arcaico. Um espaço da revolta que, ou deve ser resgatado para a ordem e para a disciplina burguesa, ou para uma nova ordem futura: a da sociedade socialista. Esse Nordeste rebelde, bárbaro, primitivo, devia ser domado, ou pela disciplina burguesa ou pela ‘disciplina revolucionária’. É do ponto de vista da ordem ou de uma nova ordem que se olha este espaço. É do ponto de vista do poder ou da ‘luta pelo poder’ que se lê este Nordeste.” (Albuquerque Júnior, 1999:194-5)         No livro, Durval destaca as obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Cândido Portinari, João Cabral de Melo Neto e os filmes realizados pelo Cinema Novo (em especial os de Glauber Rocha) como representações desse Nordeste às avessas, região que passa a não mais ser retratada desejando a “doçura” idílica de tempos anteriores, mas como território da revolta, como “paiol” de onde poderia explodir as condições de mudança de sua amarga realidade. II.         Após analisar detalhadamente as obras e autores através deste recorte do Nordeste, Durval Albuquerque Jr. mostra na conclusão de A invenção do Nordeste e outras artes que tanto a perspectiva da região como espaço da saudade quanto a que a interpreta como território da revolta, mesmo sendo aparentemente contraditórias, giram em torno da busca e do estabelecimento de identidades que ocultam mecanismos de dominação e de poder. Ambas pensam o Nordeste como uma entidade pronta e assim escondem a região como construção histórica, na qual se cruzaram diversas temporalidades e espacialidades, cujos mais variados elementos culturais, desde eruditos a populares, foram controlados por categorias identitárias tais como memória, caráter, alma, espírito, essência etc. Segundo Durval: “O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõe de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são repetidas ad nauseum, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região.” (Albuquerque Júnior, 1999:307)
        Além de desmascarar os mecanismos de construção identitária dos regionalismos, o autor, mesmo considerando que o discurso regionalista (e também o nacionalista) em determinados momentos históricos tenha possibilitado conquistas sociais e políticas (e até mesmo incentivado a criatividade artística e cultural), argumenta que a partir da década de sessenta esse discurso começa a perder o sentido frente ao fluxo da globalização que se acelera em todo o mundo, promovendo uma grande internacionalização de todos os setores das atividades humanas como, por exemplo, nas áreas da economia, da comunicação, das artes, entre outras.
“É preciso, para isso, se localizar criticamente dentro destes fluxos culturais e não tentar barrá-los. É preciso produzir uma permanente crítica das condições de produção do conhecimento e da cultura no país e em suas diversas áreas. É preciso ter um olhar crítico em relação a este olho grande que nos espia; ter uma voz dissonante em relação a estas grandes vozes que tentam nos dizer. Não se trata, pois, de buscar uma cultura nacional ou regional, uma identidade cultural ou nacional, mas de buscar diferenças culturais, buscar sermos sempre diferentes, dos outros e em nós mesmos.” (Albuquerque Júnior, 1999:310)
        Em rápidas passagens do livro, Durval cita o Tropicalismo como exemplo de uma outra possibilidade de interpretar o Nordeste, assumindo uma postura livre das implicações discursivas do regionalismo. De fato, o movimento surgido nos últimos anos da década de sessenta sintonizou, no universo da cultura, o país com a globalização que já andava a passos largos mundo afora. Com sua postura antropofágica, o tropicalismo colocou no seu caldeirão de influências elementos que iam do rock inglês (principalmente os Beatles) e a Pop Art até os ritmos musicais considerados como “genuinamente” nordestinos. Desta forma, os tropicalistas desmontavam o enquadramento fácil, principalmente em relação àqueles defensores de uma cultura nacional ou regional.
“A estratégia do movimento Mangue não é, contudo, uma proposta apenas para a música ou destinada somente à renovação da cultura pernambucana, sendo, antes, uma postura ampla de criação. O mangue é qualquer parte – um local -, um ponto de vista ou uma posição a partir da qual artistas fazem e desfazem articulações com outras partes. Articulações que geram os meios para a inserção global de uma produção marcada pela diferença frente aos códigos culturais hegemônicos (ressignificando-os de modo original) e que escapa, por isso, a quaisquer identificações com o que é derivativo ou exótico. Se esses artistas são eventualmente incluídos em um sistema de valoração patrimonial que possui amplitude mundial e é controlado por empresas (gravadoras, galerias, editoras) de países centrais, tornam-se também agentes ativos, no Nordeste do Brasil – no caso aqui tratado -, da reconstrução de uma idéia de seu país e, ainda que de forma subordinada, da cultura global, assumindo o papel de protagonistas do que Silviano Santiago chamou de ‘cosmopolitismo do pobre’.” (Anjos, 2005:63)
        Portanto, sem os resquícios do modernismo já distante e fruto das condições oferecidas pela pós-modernidade e mediante a consciência política de sua situação periférica e das possibilidades de articulações com outras partes do mundo (graças à globalização e as novas tecnologias de comunicação), o Mangue se preocupou mais com uma identificação com a produção cultural dos excluídos do mapa global, das periferias de outras áreas do planeta, do que com o estabelecimento de uma identidade regional ou nacional.
“Talvez seja possível dizer que o Nordeste do Brasil, como espaço de limites simbólicos definidos, tampouco exista. Permanece, em todo caso, como repositório de símbolos, mitos, técnicas, imagens e procedimentos que o confirmam como um partícipe da diversa, complexa e impura herança cultural do mundo. E se é pouco prudente tentar estabelecer os contornos precisos de uma idéia de Nordeste no mundo contemporâneo, pode-se afirmar, com alguma segurança, que as distinções dicotômicas presentes em debates travados na primeira metade do século XX (tradição versus europeização, Regionalismo versus Modernismo) não mais fazem sentido. As produções de seus artistas não buscam afirmar a identidade de um território com fronteiras rígidas nem têm pretensões de nacionalizar o que é falado de um lugar do país. Somadas, apenas participam, de uma posição específica, dos embates transculturais que a globalização ativa.” (Anjos, 2005: 69- 70) III.         Como o texto original do livro A invenção do Nordeste e outras artes foi terminado em 1994, Durval não poderia ter a dimensão do quanto o Mangue serviria como ilustração para o seu “desmonte” do regionalismo Nordestino. O movimento, na ocasião, era embrionário. Aí está, creio eu, uma grande razão para a retomada de sua obra: sua atualidade diante dos acontecimentos recentes do mundo da cultura. Com a saída doseu livro do mercado editorial, não tenho dúvida que perdemos no (re)conhecimento daquilo que, em determinado trecho da história do país, foi instituído sob o nome de Nordeste. Notas: [1] Título do segundo capítulo do livro A invenção do Nordeste e outras artes de Durval Muniz de Albuquerque Júnior.[2] Título do terceiro capítulo do livro A invenção do Nordeste e outras artes de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Roberto Azoubel é doutorando em literatura brasileira pela PUC-Rio. Tem interesse nos temas identidade e crítica cultural. Publicou artigos e críticas no Dicionário Albin de Música Popular Brasileira (www.cartamaior.com.br), na revista Arrecifes (publicação do Conselho Municipal de Cultura da cidade do Recife), entre outros.
Referências: Albuquerque Júnior, Durval Muniz de.. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. Anjos, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. |