SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. (Coleção Origem) 207p.

Recensão por Eliana Sousa Silva1



1 Visão Global da obra



        O livro “A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica” apresenta uma reflexão sobre o processo de modernização das denominadas sociedades periféricas. Jessé de Souza tem como referência central na construção de seu trabalho o processo de desenvolvimento estrutural dos países periféricos, sendo o seu eixo as questões da modernização institucional, em particular do Estado racional; a criação do mercado competitivo; e a transformação progressiva das práticas sociais do Brasil sob o impacto das forças econômicas, sociais e culturais dos países centrais e das forças endógenas. Ele busca, em especial, valorizar as características singulares do processo de modernização de um conjunto determinado de países periféricos em relação aos países centrais, visto que a percepção dos teóricos desses países em relação à nova periferia é, a seu ver, superficial e homogeneizadora.

        O desejo maior do autor é apresentar uma proposta alternativa ao paradigma hegemônico sobre o processo de modernização brasileira. Em livro anterior — “A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro”—, publicado em 2000 pela EDUNB, ele busca desconstruir os argumentos centrais utilizados pelas teorias tradicionais sobre o processo de modernização estrutural brasileiro. No presente livro, ele busca apresentar as referências básicas para uma interpretação alternativa. Nesse sentido, ele propõe uma leitura do processo social que caberia tanto para as sociedades periféricas como para as centrais.

        A obra está estruturada em três partes: na primeira ele apresenta, a partir de referências conceituais formuladas por Charles Taylor e Pierre Bourdieu, “a reconstrução da genealogia e da dinâmica específica da ‘ideologia espontânea do capitalismo’, a partir da lógica de reprodução de suas instituições fundamentais: mercado competitivo e Estado racional centralizado” (p. 93). Ele identifica a citada ideologia com o naturalismo, termo formulado por Taylor e que expressaria uma “tendência moderna de desvincular a ação e a experiência humana da moldura contextual que lhe confere realidade e compreensibilidade” (p.23).

        Na primeira parte são apresentados três capítulos, assim denominados: “a hermenêutica do espaço social para Charles Taylor”; “Pierre Bourdieu e a reconstrução da sociologia crítica”; e “Taylor e Bourdieu ou o difícil casamento entre Moralidade e Poder”. A reflexão de Jessé de Souza é desenvolvida numa linha de raciocínio em que as formulações dos dois autores são trabalhadas de forma complementar, na perspectiva de demonstrar o processo de “naturalização da desigualdade social de países periféricos de modernização recente como o Brasil...” (p. 17). Desse modo, Jessé de Souza vai buscar no sistema teórico de Taylor a formulação sobre o processo de

                        

(...) constituição das intuições morais [avaliações fortes] que serviram de base original para os valores fundamentais da modernidade e possibilitaram discriminar o certo ou errado; melhor ou pior; superior ou inferior, a partir de parâmetros que se impõem de forma independente de nossa vontade (p. 25).


        Já em relação à obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu há uma valorização, em especial, do conceito de habitus, central em um sistema teórico voltado para a interpretação sistêmica do processo de (re)produção das práticas sociais e das formas diversas de dominação social. Da mesma forma, adquire significado relevante a idéia de “capital simbólico” de Bourdieu, em uma formulação na qual o substantivo vai bem além do sentido tradicionalmente afirmado, dentre outros, pelo marxismo. A articulação entre o processo de construção sócio-histórica dos valores morais e a dinâmica de constituição das práticas de distinção gera uma interpretação inovadora da instituição das hierarquias sociais, com ênfase para a genealogia do Estado e do Mercado, identificados como práticas sociais, e o processo de incorporação dos valores que se tornaram hegemônicos, na modernidade, para o conjunto de classes sociais.

        Na segunda parte do livro, Jessé Souza apresenta a dinâmica singular de constituição da modernidade periférica, situando o processo brasileiro. Sem a divisão formal em capítulos da primeira parte, ele analisa, auxiliado pela formulação conceitual de Maria Sylvia de Carvalho Franco, as interpretações de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Werneck Vianna sobre a institucionalização do Estado racional e do Mercado competitivo no Brasil.

        Na construção dessa etapa do trabalho, o autor utiliza a mesma estratégia metodológica encaminhada na primeira parte: reconhecendo limitações e insuficiências presentes nas ricas formulações dos autores privilegiados, em particular Freyre e Fernandes, ele busca construir uma articulação entre as diversas proposições, na busca de construir uma análise original do fenômeno da modernização estrutural brasileira. No caso específico do autor de Casa Grande e Senzala, Jessé Souza considera possível “utilizar ‘Freyre contra Freyre’, ou seja, usar aspectos de sua obra na dimensão descritiva sem necessariamente compartilhar com as generalizações e avaliações que o próprio Freyre retira desse mesmo material empírico” (p. 102).

        No caso dos trabalhos de Florestan e Werneck Vianna, o grau de identificação de Jessé Souza é maior. Mas ele destaca algumas insuficiências interpretativas na obra do primeiro, em particular. O fato derivaria do olhar de Florestan sobre o processo de modernização nacional ser marcado por um forte filtro paulista. Diante disso, complementa a sua interpretação com as proposições apresentadas por Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos.

        Na terceira parte da obra, Jessé Souza apresenta suas conclusões fundamentais sobre o que denomina de “construção social da subcidadania”. Para isso, ele utiliza como referência preliminar a obra de Florestan Fernandes “a integração do negro na sociedade de classe”. Na busca de oferecer uma resposta mais satisfatória, entretanto, para a constituição do que denomina de “ralé estrutural”, Jessé recupera algumas formulações apresentadas nas partes anteriores e sugere, em particular, o processo de ampliação do conceito de habitus de Pierre Bourdieu. A partir da adjetivação do termo “precário”, nosso autor demonstra como se constitui um determinado tipo de habitus que reproduz, de forma sucessiva, o processo de inadaptação de amplos setores das classes populares aos padrões jurídicos, políticos, culturais e econômicos afirmados pelo Estado racional e pelo Mercado competitivo.

        Cabe salientar que Jessé Souza considera que a interpretação proposta cabe tanto para as sociedades da nova periferia quanto para as relações atualmente estabelecidas nos países centrais. Dessa forma, ele conclui seu trabalho voltado para a valorização do processo de reprodução da desigualdade social periférica.


2 Referências teóricas centrais do livro


        Uma primeira questão posta por Jessé de Souza relaciona-se à produção teórica tradicional sobre o desenvolvimento das sociedades periféricas, centrada em torno de uma teoria da modernização na qual esta é vista como dicotômica com a tradição, definida sempre por sua negatividade. O paradigma personalista e patrimonialista, em suas vertentes tradicionais ou contemporâneas – neste último caso, caracterizadas pelo “hibridismo” - permanecem como as referências implícitas das análises, em geral.

        Na crítica a estas formulações, Jessé vai utilizar as formulações do norte-americano Charles Taylor, em especial as trabalhadas em sua principal obra, “As fontes do self”, publicada em 1989 e ainda não traduzida em português. Nesse trabalho, Taylor afirma a necessidade de se compreender a experiência humana de forma contextualizada e situada. Essa prática exige a interpretação e resignificação da vida cotidiana, o que se torna, de certa maneira, complicado nos dias atuais, em função da naturalização da vida e sua desvinculação da ação e experiência humana (p. 23).

        Taylor não faz separação entre sistema e mundo da vida efetuada, como o faz Habermas, por exemplo. Para ele

                        

(...) os imperativos sistêmicos não se confrontam com as identidades individuais como algo externo. Ao contrário, esses dois lados são componentes da mesma identidade e são produzidos e adquirem eficácia precisamente por conta disso....,[assim], as fontes morais ou os bens constitutivos de uma cultura precisam ser articulados de modo a poderem ser utilizados como motivação efetiva para o comportamento concreto (p. 24).


        Desse modo, para Taylor, apenas formulamos sentido para as nossas vidas com base nas relações que estabelecemos com as avaliações fortes que formam a referência última da condução da vida do sujeito moderno (p. 25). No caso da moral específica do ocidente, ele identifica duas vertentes como fonte da moralidade: o princípio da dignidade e o da afirmação da singularidade da vida cotidiana — expressivismo. Ambos só têm condições de se afirmar a partir da constituição do processo de interiorização de uma determinada forma de ação moral, que se desenvolve pari passu com o capitalismo.

        O ponto de partida do autor em questão a respeito da constituição do princípio da interioridade é o reconhecimento da mudança gigantesca da consciência entre a antiguidade clássica e o ocidente moderno. O filósofo Platão seria o responsável pela sistematização de uma concepção moral marcada pelo dualismo entre o “eu” e o desejo, no qual o primeiro é sempre ameaçado pelo segundo. Diante disso, este deve ser subordinado e guiado pela razão; razão esta que tem como função maior descobrir e se apropriar das idéias, que são pré-existentes e estão no mundo da perfeição, exteriores ao sujeito (p. 26).

        Santo agostinho, por sua vez, ao analisar e se apropriar da tradição platônica, vai propor uma especificidade nessa compreensão do conhecimento. Para ele, como afirma Jessé Souza

                        

(...) o conhecimento não é uma luz exterior lá fora, uma revelação portanto, como era para Platão, mas é algo interior em nós mesmos, sendo antes uma criação que uma revelação. Na realidade, é uma mudança de foco a favor da própria atividade de conhecer (p. 26).


        Outro aspecto fundamental na proposição de Agostinho é sua valorização da inteligência como elemento de estabelecimento das hierarquias humanas e o reconhecimento da vontade como atributo do ser humano. A partir da inteligência, ele irá estabelecer a distinção entre “os seres que vivem e têm consciência e os simples viventes” (p. 27). Nesse caso, o ser inteligente é considerado superior ao simples vivente.

        Com Descartes, o modelo de domínio racional por parte do indivíduo assume a forma de controle instrumental. Essa nova visão do universo, segundo Taylor, é mecanicista e não teológica. Ela vai resultar em uma nova representação da realidade a ser construída (p. 28). Essa outra forma de se perceber o ser humano, situado no começo do século XVII, vai ser transformada, a partir da formulação de Locke, na base da teoria política sistemática. “Locke introduz o tema da vontade. A mente tem o poder de não só se remodelar de acordo com princípios escolhidos aleatoriamente, mas também do hábito e da autoridade local“ (p. 29). Com isso, admite-se a possibilidade de (re)criarmos nossos hábitos e normas.

        É a partir dessa nova concepção que Taylor vai caracterizar o que denominou de “self pontual ou neutro”. Ele utiliza esta noção para caracterizar o indivíduo desengajado, atomizado, capaz de se recriar. Ou seja, vive a partir de sua auto-responsabilidade, moldada pelas noções de liberdade e razão. Essa forma de vivência vai, de forma progressiva, se incorporando como prática social, institucionalizando o Estado Racional e o Mercado competitivo, em especial, e se naturalizando, de forma tal que suas raízes contingentes são “esquecidas”.

        O “self pontual” é a base para a constituição do princípio da dignidade humana. E Kant tem um papel central na sua afirmação ao considerar que

                        

(...) o fato de sermos seres racionais nos garantiria uma dignidade única. Se a natureza obedece leis, são apenas os seres racionais que obedecem princípios (...) enquanto todas as coisas têm o seu preço, somente os agentes racionais possuem dignidade (...) são fins em si mesmo (p. 32).


       O corolário dessa proposição é o reconhecimento de que todos os seres humanos se caracterizam por uma condição comum, como ser vivo e portador da razão, logo, devem ser valorizados em sua dignidade. O enfoque, revolucionário, rompe com os padrões morais centrados na “honra”, típicos da era pré-moderna, que pressupõem distinção e privilégio,.

       Esse movimento de desenvolvimento do princípio da interioridade, que se desdobrará no respeito à dignidade humana, em suas dimensão social, tem como referência inicial, no Ocidente, as classes burguesas da Inglaterra, EUA e França. O processo de desenvolvimento da fé protestante permite a transposição para a vida cotidiana dessas fontes de moralidade vislumbradas por diferentes pensadores, de forma progressiva. Com o avanço da ordem capitalista e o desenvolvimento das formas múltiplas de disciplinarização do corpo e da vontade, que se expandem a partir do século XVIII, esse princípio da interioridade vai se universalizando até atingir todas as classes sociais dos países centrais.

       A dignidade humana é a primeira fonte de moralidade moderna para Taylor, mas não a única. Adquire relevância também o que ele vai denominar de expressivismo, que se manifesta como uma expressão de autenticidade. O seu eixo central é o reconhecimento do caráter singular do ser humano e seu processo original de desenvolvimento. Concebe-se, a partir desse pressuposto,

                        

(...) a natureza interna do ser como um campo no qual se funde o sensual e o sentimental com o espiritual, tendo os primeiros primazia. Nesse caso, há uma positividade e uma resignificação das paixões. O expressivismo seria a exigência para que se viva de acordo com essa originalidade. Nesse caso, o certo ou errado passa a ser ancorado também em nossos sentimentos. A moralidade passa a ter, de certo modo, uma voz interna (p.33).


       As duas formas de interioridade – dignidade e autenticidade - implicam uma radicalização do subjetivismo, mas são também rivais, pois, “exercer uma forma de maneira conseqüente é abdicar da outra” (p. 34). A grosso modo, pode-se dizer que a dignidade se sustenta no princípio da igualdade e a autenticidade no princípio da diferença. E estes são os dois princípios da vida social que nortearam, e norteiam, os embates políticos, econômicos e culturais dos tempos modernos.

       Taylor, de acordo com Jessé Souza, valoriza a autenticidade como a contradição fundamental dos países centrais, pois considera que a dignidade, em sua essência, estaria resolvida nos países centrais. Para nosso autor, todavia, essa posição não leva em conta o contínuo processo de ampliação das desigualdades sociais que vem ocorrendo nos países centrais, com destaque para os EUA, justamente o mais rico. Nesse caso, considera que não cabe valorizar apenas a diferença como valor fundamental a ser reconhecido e aprofundado nos países centrais.

       Nos casos dos países periféricos, porém, Jessé Souza considera inegável a necessidade de se desenvolver o reconhecimento da dignidade como valor fundamental. No desenvolvimento de seu trabalho, ele buscará mostrar como as sociedades periféricas secundarizaram esse princípio e, em função disso, produziram dois tipos de cidadãos distintos, reproduzindo, de forma permanente, a desigualdade social.

       O trabalho de Taylor permite o desvelamento, a partir de sua genealogia, dos valores morais fundamentais para o desenvolvimento das instituições centrais do capitalismo e para a reprodução das relações sociais. Ele não dá conta, entretanto, da dinâmica de reprodução das hierarquias sociais no mundo social. A fim de superar essa pretensa lacuna, Jessé Souza buscará as formulações desenvolvidas por Pierre Bourdieu. A interlocução com esse autor se deve, principalmente, ao seu questionamento de maneira sistemática da “ideologia da igualdade de oportunidades” que se faz presente na ordem capitalista. Idéia trabalhada no processo de dominação simbólica das sociedades capitalistas avançadas, essa ideologia coloca para as perspectivas críticas e radicais uma falsa visão de superação tendencial da luta de classes característica do capitalismo.

       Bourdieu vai trabalhar na perspectiva de mostrar e pôr em questão a legitimidade e as formas opacas e distorcidas de dominação de classe presentes no mundo social. Formas que são (re)produzidas pelos agentes sociais de forma não-consciente, através da incorporação progressiva de determinadas práticas sociais. Práticas essas que se tornam estruturantes de novas práticas, de forma sucessiva.

       Na sua construção teórica, Bourdieu questiona as interpretações objetivistas, que seriam típicas do estruturalismo, por um lado, e as proposições subjetivistas, que caracterizariam abordagens como o interacionismo social, a etnometodologia e, em particular, a que privilegia a “ação racional”, por outro. Trabalhando na tensão entre estes dois pólos, ele visa construir uma interpretação das estratégias de ação dos agentes sociais centradas, em especial, no conceito de habitus, por ele resignificado, e de capital simbólico, base para a dominação entre os agentes e classes sociais.

       O habitus pode ser definido como um processo permanente de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade. Nessa perspectiva, considera-se que o agente social constrói-se de forma permanente a partir de um processo dinâmico de incorporação de práticas sociais, interpretadas de forma singular de acordo com suas características subjetivas. Assim, “ele não se confunde com a necessidade mecânica nem com a liberdade reflexiva dos ‘atores racionais” (p. 43). O agente tem, assim, um campo de ação possível, delimitada pelo seu processo de inserção nos campos sociais. O habitus seria, então, responsável, pelo processo de delimitação do campo de escolhas e de produção de gostos nos agentes sociais, gerando as diferenciações sociais.

       Toda sociedade, de acordo com Bourdieu, assim como Taylor, tende a naturalizar relações sociais que são contingentes e constituídas socialmente. Essa naturalização se constitui como uma Ideologia espontânea, que fundamenta e legitima o conjunto de hierarquias entre os indivíduos e classe. No caso das sociedades ocidentais, cabe, todavia, aos capitais econômico e cultural o papel de instrumentos estruturantes das relações de dominação e sua reprodução, ao contrário das sociedades pré-modernas, que se baseiam no capital social.


3 O processo de subcidadanização na “nova periferia”


       Para iniciar sua análise do processo de construção histórica da desigualdade social no Brasil e países afins, Jessé Souza faz uma distinção entre a “nova periferia” e a “velha periferia”. Esta última seria constituída por países e povos, tais como China e Índia, que já tinham uma forte tradição institucional, em particular no plano estatal no processo de contato com o capitalismo dos países ocidentais centrais. Essa estrutura pré-existente fez com que houvesse uma adaptação - esquematização, no sistema taylorista - dos valores e práticas oriundas do ocidente capitalista.

       O mesmo não teria ocorrido na nova periferia, constituída, dentre outros territórios, pela América Latina. Nesse caso, os padrões de relações sociais, econômicas e culturais dos países centrais, em particular a Inglaterra, teriam chegado a estes espaços antes dos valores racionais e morais sem que houvesse um processo de incorporação anterior por parte do conjunto da população, fenômeno ocorrido nos países de origem. Assim, no Brasil, em particular, as práticas sociais que geraram a instituição do Estado racional centralizado e o mercado competitivo não se sustentaram nas mesmas fontes de moralidade características dos países centrais (p. 132).

       Devido a isso, o princípio da dignidade humana de todos os cidadãos não foi incorporado pelo conjunto das classes sociais, construindo-se uma hierarquia social que ignora a igualdade como princípio das relações sociais, do funcionamento do Estado e do Mercado. A violência, de todas as ordens, nesse caso, foi o elemento central no plano das relações sociais – e cabe salientar que essa prática continua sendo uma expressão significativa na comunicação entre os diversos grupos e agentes sociais.

       Assim, ao contrário do afirmado pelas teorias identificadas pelo paradigma modernizante, o desenvolvimento institucional da nova periferia não foi detido pela presença de resíduos personalistas, patrimonialistas ou familistas do passado, visto que estes não geraram uma visão de mundo articulada institucional e simbolicamente, homogênea a todos os grupos e classes sociais (p. 97). O que caracterizou, então, o processo de modernização brasileiro e periférico foi antes a ausência de valores fundamentais para a constituição do capitalismo ocidental do que a força inercial dos resíduos do passado.

       Outro aspecto central na desconstrução das teorias modernizantes tradicionais feita por Jessé Souza baseia-se na crítica à valorização de Gilberto Freyre de uma pretensa plasticidade do português em sua ação colonizadora. Essa condição teria permitido ao colonizador criar um sistema de relações marcado por um alto grau de coesão entre os dominantes e dominados, senhores e escravos, sem que o português perdesse sua identidade original. Teria contribuído para isso o processo de assimilação da experiência muçulmana de escravização, denominada de “escravidão muçulmana”.

       Como contraposição à visão da plasticidade e da escravidão muçulmana, Jessé propõe a visão sadomasoquista, presente de forma dispersa na obra do próprio Freyre (p. 114). Nessa abordagem social-psicológica do processo de relações sociais na colônia, a violência seria uma componente fundamental do processo de relação social entre e interclasses, entre os gêneros e as gerações. Tendo como referência original o patriarcalismo, caracterizado pelo poder absoluto do “senhor”, as relações centradas no sadismo alimentariam o conjunto de relações sociais na colônia. Nelas, estavam subordinados os escravos, os homens livres, mas dependentes, as mulheres e os filhos. A incorporação, por sua vez, do “opressor pelo oprimido”, nos termos de Paulo Freire, geraria um processo de reprodução das relações de dominação e das diversas formas de violência.

       Na leitura de Florestan Fernandes do processo de criação do Brasil moderno, Jessé Souza vai valorizar sua interpretação de que a independência política quebra o pacto colonial e cria a necessidade de um estado nacional articulado. Esse processo gera o processo de constituição da sociedade burguesa no Brasil, a partir da dinâmica iniciada pelos produtores paulistas. Jessé considera como limite da interpretação de Florestan focar em São Paulo esse processo, estabelecendo uma analogia reducionista entre os bandeirantes e os novos produtores paulistas. Essa interpretação paulista do processo ignora todo o processo que já vinha ocorrendo em Salvador, Rio de Janeiro e Recife (p. 135).

       Nesse sentido, Jessé valoriza outra preciosa contribuição de Gilberto Freyre. Em Sobrados e Mucambos, seu segundo livro da trilogia sobre a o processo de construção da identidade brasileira – o terceiro será Ordem e Progresso —, nosso mais brilhante intérprete faz uma inovadora microssociologia do cotidiano da colônia na primeira metade do século XIX. Ali, Freyre descreve o lento processo de decadência da cultura patriarcal rural brasileira a partir do desenvolvimento da cidade e de novas práticas sociais (p. 137).

       Por fim, Jessé Souza apresenta de forma breve, mas significativa, o olhar de Werneck Vianna sobre o processo nacional. A partir do conceito de Revolução Passiva, ou Prussiana, Vianna considera que a história brasileira é marcada por um processo sucessivo de pacto entre as classes dominantes, que se revezam no poder, em diferente posição. Essas transformações realizadas pelo alto, de forma conservadora, garantiram a manutenção de um sistema social desigual, politicamente autoritário e economicamente concentrador de renda.

       Esse processo, todavia, para Jessé, não seria possível se amplas parcelas da população não tivesse incorporado um habitus peculiar, que possui como referência a reprodução da inadaptabilidade ao exercício da cidadania nos termos definidos pelo Estado Racional regulado e pelo Mercado Competitivo. Esse habitus, denominado de precário por Jessé Souza, seria

                        

(...) o limite do habitus primário para baixo, ou seja, aquele tipo de personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo, podendo gozar de reconhecimento social, com todas as suas dramáticas conseqüências existenciais e políticas (p. 167).


       O seu oposto, para Jessé, seria a incorporação do habitus secundário, que “tem a ver com o limite do habitus primário para cima, ou seja, tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social” (p. 167). A partir dessa diferenciação, Jessé busca materializar as forma de reprodução da desigualdade e das hierarquias sociais a partir da noção de Reinhard Kreckel de Ideologia do desempenho. Ela se basearia na tríade meritocrática, que envolve qualificação, posição e salário (p. 169). Essa ideologia tanto estimula e premia a capacidade de desempenho como legitima o acesso diferencial e permanente a chances de vida e apropriação de bens escassos.

       A tríade também, assinala Jessé, torna compreensível porque apenas através da categoria do ‘trabalho’ é possível se assegurar da identidade, auto-estima e reconhecimento social. (p.169). Dessa forma, cria-se uma lógica social em que os próprios agentes excluídos das possibilidades de inserção nessa determinada esfera produtiva se sentem responsáveis pela sua marginalização. Como o processo de reprodução da desigualdade aparece como resultante da trajetória pessoal, a auto-estima baixa termina sendo um componente inerente à inserção no mundo social das classes populares.

       Nesse caso, sua condição de subcidadanização é afirmada de forma objetiva pelo sistema social, reconhecida a partir de diferentes práticas socais pelos incluídos na lógica produtiva dominante e reforçada pelo processo de culpabilização subjetiva incorporado pelos dominados. Temos assim um sistema de reprodução da desigualdade que se alimenta de valores morais fortes absolutamente diferenciados dos referentes construídos historicamente nos países centrais.

       Caberia, nesse sentido, desvelar de forma ampliada esse sistema de valores que legitimam a violência e a desigualdade social e construir outros elementos, centrados na dignidade humana, sem deixar de se reconhecer a diferença, para escaparmos do círculo infernal de crescimento econômico e modernização social, mas permanente produção de cidadãos com desiguais status e condições de exercerem sua cidadania.


3 Apreciação crítica


       Jessé Souza, em determinada parte de sua obra, cita, de forma ligeira, sua origem nordestina, em contraposição ao olhar paulista de Florestan Fernandes. Esse lugar de origem no pólo dominado, em termos territoriais, conforma seu trabalho. Sua crítica radical às teorias modernizantes tem como evidente referência o compromisso em buscar as raízes mais profundas do processo de desigualdade que domina o Brasil e as sociedades da “nova periferia”. E esse é o principal mérito de seu trabalho.

       O uso de argumentos teóricos consistentes, a criatividade na incorporação crítica das contribuições de autores variados e a perspectiva de olhar para o fenômeno de institucionalização brasileira a partir dos interesses dos dominados permitem o desvelamento efetivo dos mecanismos sociais e ideológicos que reproduzem a desigualdade e a legitimam.

       Desse modo, fica evidenciado o sentido instrumental do uso de termos aparentemente inofensivos como “comunidades carentes” em relação à favela e seus moradores, assim como a interpretação da Região Nordeste, em particular da área semi-árida, como “região-problema”.

       Da mesma forma, a difusão de políticas públicas que tratam os espaços populares como áreas de menor valor, destinando a maior parte dos recursos públicos para as áreas nobres – como demonstra os seguintes projetos propostos pela Prefeitura do Rio de Janeiro: a construção da Cidade da Música na Barra da Tijuca, no valor de cento e cinqüenta milhões de reais, e da Lona Cultural da Favela da Maré, no valor de trezentos mil reais. Explica-se também o baixo investimento na educação e na saúde públicas, assim como na habitação e na cultura popular.

       Fica evidente, na leitura do livro de Jessé Souza, que não basta produzir novas políticas públicas, mas cabe trabalhar na produção de novas formas de reconhecimento do processo de reprodução social, na busca de se construir uma sociedade onde se reconheça a existência de apenas um cidadão.
       O limite, porém, presente na obra de nosso autor parece-me estar no fato de não reconhecer, em momento algum, as lutas dos diversos grupos sociais populares no sentido de construir sua efetiva cidadania. A construção das favelas e outros espaços populares; a luta histórica pelo acesso à terra, de diversas formas, e pelo acesso aos serviços e equipamentos sociais, tais como escola, saneamento, energia, asfalto etc; a afirmação do direito ao trabalho, mesmo que informal etc. Todas essas são práticas efetivas de afirmação de um lugar social, da busca de uma visibilização da existência que não se subordina aos parâmetros dominantes, e na qual se constrói as próprias condições de sociabilidade.

       Nesse sentido, o fato de as classes populares assumirem uma posição subordinada no mundo social formal, definido a partir do Estado Racional e do Mercado competitivo não significa a exclusão do mundo social como um todo. Na verdade, o mundo não se esgota nesse mercado e nesse Estado específicos, pois eles não são monolíticos ou sinônimos do mundo social.

       Podemos afirmar, na verdade, que existe a afirmação cotidiana da condição de cidadão, que não é concedida pelas instituições homogêneas, mas é construída na vida cotidiana. Assim, a cidadania não é algo para a qual se prepara, que se resgata ou que vem no processo; ela é exercida desde o ingresso do ser no mundo social. Desse modo, a ocupação da terra para trabalhar e habitar; a ocupação das ruas para se trabalhar; a criação de instituições comunitárias para se reivindicar são expressões profundas de uma cidadania em ato, em permanente (re)criação. E, sem essa interpretação, corremos o risco de ver os grupos sociais populares como vítimas passivas desse processo histórico cruel e que transforma nosso país, e tantos outros da nova periferia, em expressões maiores da injustiça, da violência e da desigualdade. Na verdade, há força, vitalidade e movimento no mundo social, marcado pelo conflito e pela luta. Digo isso, porque a minha própria vivência e o que sou comprovam essa visão.




1Doutoranda em Serviço Social pela PUC-Rio.