Educação Matemática: entrelaçando pesquisa e ensino, compreensão e mudança.

Gilda de La Rocque Palis

Resumo

O objetivo deste artigo é compartilhar algumas preocupações sobre o ensino e a aprendizagem de matemática no nível universitário, incluindo a preparação de professores, e alguns aspectos de nossos estudos e pesquisas nesta área. Descrevemos fundamentos e perspectivas teóricos relacionados a duas questões: como ensinar e como preparar professores para ensinar o conceito de número real e como podemos desenhar atividades baseadas na prática para desenvolver o conhecimento pedagógico disciplinar do professor de matemática.

Palavras-Chave: Educação Matemática Universitária. Número real. Conhecimento pedagógico disciplinar.

Abstract

The purpose of this paper is to share some concerns about mathematics teaching and learning at university level, which includes the preparation of teachers, and some aspects of our ongoing study and research on this area. We describe theoretical backgrounds and perspectives related to two questions: how to teach and to prepare teachers to teach the real number concept and how can we model practice-based tasks to develop mathematics teachers´ pedagogical content knowledge.

Key words: College mathematics education, real number concept, pedagogical content knowledge.

        A pesquisa em educação matemática vem construindo conhecimento teórico e prático sobre o processo de ensino e de aprendizagem de matemática. Os trabalhos na área, que se concentravam na escola fundamental, vêm cada vez mais procurando compreender a escola média e o ensino superior, a reboque da expansão desses níveis de escolaridade. O estudo da articulação entre os diferentes segmentos também tem seu significado ampliado, pois é cada vez mais freqüente um professor de ensino superior inicial se perguntar (e não saber responder): Com quais conceitos, processos matemáticos e formas de raciocínio, os meus alunos têm familiaridade? O que é que eu posso fazer para criar uma ponte entre o conhecimento já adquirido pelos meus alunos e aquele que eu pretendo que eles construam? As tentativas de discussão destas questões quase sempre remetem o pesquisador ao ensino médio, e muitas vezes ao ensino fundamental, na busca de um entendimento das dificuldades encontradas pelos estudantes, professores e formadores de professores e de estratégias para superá-las.
        As pesquisas que venho realizando e coordenando se inserem neste contexto e se entrelaçam com minhas atividades docentes no ensino universitário1 , umas se alimentando das outras. A seguir discutirei alguns aspectos relativos a temas que temos estudado mais recentemente e que também estão intrinsecamente relacionados.

Construindo saberes pedagógico-disciplinares em Matemática no nível universitário2 . O caso particular dos números reais.

        A pesquisa em educação matemática no nível universitário busca compreender o ensino e a aprendizagem de matemática nesse nível de ensino. Procura-se saber o que significa compreender certas idéias matemáticas avançadas, como esta compreensão pode ser construída pelos alunos, que dificuldades poderiam se interpor e que atividades poderiam potencialmente levar às construções pretendidas. Para isto a pesquisa em educação matemática tem adaptado métodos de várias áreas sociais e humanas a domínios matemáticos específicos e também desenvolve suas próprias ferramentas para conceitualizar o aprendizado matemático.
        Dentre os referenciais teóricos que têm sido usados neste tipo de estudo, podemos citar duas teorias que têm muitos pontos em comum: a teoria da dualidade operacional - estrutural (Sfard, 1991) e a teoria Apos (Asiala et al., 1996), que lida com as concepções ação / processo / objeto de um conceito matemático. Estas teorias, com as quais temos trabalhado, colocaram em evidencia uma mudança qualitativa crucial no estudo das relações que os alunos desenvolvem com os conceitos matemáticos: a transição de concepções processo para concepções objeto, cuja dificuldade era subestimada no nível universitário. Além disso, estas teorias têm se mostrado bastante adaptadas ao estudo das questões pertinentes ao ensino aprendizagem da matemática universitária e podem ser ferramentas úteis de construção de currículo. Estas idéias também ajudam a tornar as discussões sobre ensino aprendizagem mais produtivas, podem ajudar a ver as tentativas do aluno para fazer sentido de conceitos, discursos e processos matemáticos como prejudicadas ou limitadas pelas suas concepções no momento observado e não apenas como conseqüência de ausência de esforço ou aplicação ao estudo. Alguns trabalhos nossos usando a teoria Apos podem ser encontrados em Palis e Silva (2001), Palis e Ipina (2002) e Palis (2003).
        De acordo com Sfard (1961), os conceitos matemáticos têm uma dualidade operacional - estrutural inerente. Em diversos ramos da matemática podem-se distinguir dois tipos de componentes: objetos abstratos e processos computacionais. De acordo com este modelo teórico, objetos abstratos e processos computacionais são dois aspectos da mesma coisa. Exemplos: (3x-2) pode ser visto como um objeto em si mesmo, mas também como o processo “multiplicar 3 por x e subtrair 2”; operacionalmente, uma circunferência é a curva obtida girando um compasso em torno de um ponto fixo e estruturalmente é o lugar geométrico de todos os pontos eqüidistantes de um dado ponto.
        Análises históricas e psicológicas de desenvolvimento conceitual apontam que as concepções operacionais (como processos) usualmente se desenvolvem antes das estruturais (como objetos). É importante que seja desenvolvida também a habilidade de se mover entre estas concepções quando necessário. A apresentação de forma estruturada de um objeto matemático pode não ser suficiente para convencer um aluno sobre a sua existência. As dúvidas sobre a natureza de um tal objeto bem como a legitimidade do ato de criá-lo livremente podem impedir a compreensão dos alunos da mesma forma que obstruíram, por exemplo, o desenvolvimento da concepção abstrata de um número real até o século XIX. De fato não há razões para supor que nossos alunos são mais maduros matematicamente falando do que grandes matemáticos anteriores ao século XIX (Sfard, 1995).
        A relevância da pesquisa no ensino universitário inicial foi apontada no relatório de Selden e Selden (1999) na qual estes autores mencionam que na plenária da reunião do ICMI (International Commission on Mathematical Instruction) sobre o tema “The Teaching and Learning of Mathematics at University Level”, realizada em 1998, o matemático e educador Hyman Bass apontou quatro áreas da educação matemática que necessitam decisivamente de pesquisa sistemática defendendo que uma delas é a transição ensino médio / ensino superior. Por outro lado, Selden e Selden chamam a atenção para a necessidade de dirigir parte da pesquisa na área de educação matemática universitária para a geração de conhecimentos pedagógico-disciplinares relativos ao ensino superior. Este conhecimento é ainda raro e pouco documentado.
        O conceito de saber pedagógico-disciplinar foi introduzido por Shulman (1986) e tem influenciado fortemente a pesquisa da área educacional. Shulman distinguiu três categorias do saber do conteúdo para ensinar: o saber disciplinar (a estrutura substantiva e sintática da disciplina incluindo o que significa dizer que uma proposição é verdadeira / falsa e o que envolve garantir a veracidade / falsidade dessa proposição), o saber curricular (programas, materiais instrucionais, parâmetros, currículo horizontal e vertical) e o saber pedagógico disciplinar.
        O saber pedagógico-disciplinar é um tipo especial de conhecimento que alia conteúdo e pedagogia; vai além do saber disciplinar para abranger o conhecimento disciplinar para ensinar, i.e., o conhecimento disciplinar que é relevante para o seu ensino. No saber pedagógico-disciplinar, Shulman inclui: quais representações são mais úteis para apresentar uma idéia matemática específica; as analogias, ilustrações, exemplos, explicações e demonstrações com maiores potenciais para tornar o conteúdo compreensível para os alunos; a compreensão do que faz o aprendizado de certos tópicos ser difícil ou fácil; conhecimentos baseados em pesquisas a respeito das concepções mal formadas e conhecimentos prévios dos alunos relacionados aos tópicos lecionados mais freqüentemente; estratégias para lidar / modificar concepções errôneas.
        Um dos conceitos que temos estudado nos quadros teóricos referidos acima é o de número real, em um trabalho investigativo que abrange uma reflexão sobre “como ensinar e como ensinar a ensinar números reais”, uma das idéias fundamentais da matemática, e procura gerar conhecimentos pedagógico-disciplinares relacionados ao ensino e à aprendizagem de números reais em diferentes segmentos de ensino: na transição do ensino médio para o ciclo superior, na licenciatura e na formação continuada. Estudos preliminares relacionados a esta problemática podem ser encontrados em Palis (1994, 1995 e 2000).
        A ampliação do sistema dos números racionais para o sistema dos números reais é tratada na 7a/ 8a série do ensino fundamental e na 1a. série do ensino médio no período pré-universitário. Lima (2001) coloca que a apresentação dos números reais no “livro genérico” do ensino médio de Matemática é “... obscura. Não há menção a medidas. Deseduca e mistifica”. Pelo estado do conhecimento dos alunos recém ingressos no nosso ciclo superior, podemos conjecturar que a extensão do sistema dos números racionais para o sistema dos números reais não vem sendo feita de forma adequada também em sala de aula.
        Não é surpresa para nenhum professor de matemática universitária inicial que o campo numérico dos alunos na transição entre o ensino médio e inicial universitário na área técnico científica é freqüentemente muito pobre.
        De forma espontânea eles utilizam somente números inteiros entre –3 e 3 para pensar sobre muitas das questões que lhes são propostas; têm dificuldade com operações com números racionais; atrapalham-se bastante com a orientação dos números na reta numérica (por exemplo, considerar números cada vez menores é para muitos deles tomar números positivos cada vez mais perto de zero). Isto sem falar no mistério profundo que cerca os números irracionais. É bom lembrar que os números irracionais aparecem a toda hora ao se trabalhar com as funções elementares no ensino médio, mesmo sem que nenhum esforço seja feito para isso; por exemplo log 2 (base 10) é um irracional, sen (π / 4) e sen (π / 3) também. Já observamos que alguns alunos consideram a presença do número π no eixo OX do sistema de coordenadas em que se esboça o gráfico de funções trigonométricas como etiquetas, nada tendo a ver com a unidade de medida de comprimento no eixo OX.
        Os números reais são provavelmente o objeto matemático mais amplamente empregado no ensino superior inicial nas disciplinas de Cálculo e em outras disciplinas de conteúdo matemático. As disciplinas de Cálculo trabalham com a tautologia que os números reais são os pontos da reta e, apesar de lidarem com várias noções que se apóiam no conceito de número real, os alunos destas disciplinas têm uma idéia extremamente vaga do mesmo, quase que reduzida a um vocábulo sem significado. A atitude didática típica se caracteriza por considerar o aprendizado dos reais como "se fazendo por si mesmo" ou estes números como pré-construídos. Concordamos com Pinto ∓ Tall (1996), quando dizem: “o ensino tradicional dos sistemas numéricos na universidade usualmente superestima a compreensão informal dos estudantes sobre números supondo uma aparente intuitividade da reta real matemática que não existe no aluno típico”. Algumas pesquisas sobre ensino aprendizagem no ensino superior trabalham com várias noções que dependem fortemente dos números reais (funções reais e limites, por exemplo) supondo-os também pré-construídos, apesar de diversas pesquisas denunciarem o estado do conhecimento a respeito desses números em níveis de escolaridade diversos, incluindo a licenciatura (Igliori, 1998; Dias, 2002; Fischbein, 1995; Robinet, 1986; Soares, 1999; Moreira,2004).
        Precisamos lembrar que a natureza do número real, envolvendo questões difíceis como infinito, limite e continuidade, perturba tanto alunos e professores como perturbou matemáticos por muitos séculos. Como bem observa Caraça (1951): “enquanto para definir um número racional, bastam dois números naturais – o seu numerador e o seu denominador – para definir um número real são necessárias duas infinidades de números racionais...”
        A dificuldade presente na construção do número real do ponto de vista estrutural é de se esperar, haja visto o longo tempo histórico para o estabelecimento dessa concepção.
        Descobertos pelos Pitagóricos no século VI AC, os irracionais foram manipulados, tratados e aproximados, já desde a Idade Média, com o apoio do sistema de numeração decimal, sem maiores questionamentos sobre a natureza destas quantidades. Foi somente no século XIX que a necessidade de uma formulação mais precisa dos fundamentos destes números foi sentida e tiveram lugar as primeiras teorias científicas dos irracionais com Dedekind em 1972 e Cantor em 1883. Vistos como medidas de comprimentos e soluções de equações por um longo período de tempo, o número real somente adquiriu estatuto de objeto formal matemático no século XIX.
        A reificação (conversão de um processo em objeto abstrato) é necessária para uma compreensão profunda de um conceito, mas é também um processo muito complexo e difícil de atingir envolvendo um círculo vicioso complicado. No caso dos números reais, conjecturamos que a reificação não pode ser esperada antes que alguma familiaridade com operações com números reais tenha sido atingida. Por outro lado, estas operações não podem ter realmente significado sem a reificação. De acordo com Sfard (1955), professores e alunos precisam se conformar com a necessidade de trabalhar com técnicas algébricas e manipular objetos abstratos mesmo tendo dúvidas sobre o seu significado pois os conceitos acabam se tornando mais fáceis de reificar e aceitar, o que parece uma recomendação pedagógica estranha ou mesmo antiquada.
        A dificuldade com o ensino e a aprendizagem de números reais pode explicar porque os ensinos médio e inicial universitário o evitam. Assim, em geral, não se faz um ensino possível dos reais, matematicamente correto e suficientemente operacional com vistas à compreensão que se deseja de outros conteúdos que se apóiam no conceito de número real.
        Questões relacionadas especificamente à aprendizagem dos números reais do ponto de vista de sua construção cognitiva, de como as idéias matemáticas pertinentes podem ser construídas, não têm sido muito enfatizadas. Nos parece então que muito trabalho ainda é necessário para se chegar a uma melhor compreensão das construções mentais subjacentes à aprendizagem dos números reais.

Aprender matemática para ensinar: desenvolvimento, aplicação e análise de atividades centrais à prática de ensino.

        Nesta linha de pesquisa pretendemos explorar o processo de “aprender matemática para ensinar” e propor alternativas na formação inicial e continuada de professores de matemática escolar. No que se segue, descreveremos alguns pressupostos teóricos e daremos algumas indicações sobre nossas investigações nesta linha.
        A afirmativa de que o conhecimento matemático é um componente essencial do conhecimento do professor de matemática não é nova. Afinal, ensinar envolve ajudar os alunos a aprender, logo compreender o que é que é para ser ensinado é um requisito central para ensinar. Contudo, apesar da afirmativa de que os professores devem saber o que ensinam parecer evidente, não há consenso sobre o que está incluído na expressão “conhecimento matemático requerido para ensinar”.
        Os primeiros estudos para validar a importância do conhecimento disciplinar do professor de matemática não foram bem sucedidos. Um estudo clássico de Begle (1979) é freqüentemente mencionado como uma evidência da irrelevância do conhecimento disciplinar (Howe, 1999). O trabalho de Begle analisou a relação entre o número de disciplinas de nível superior (pós-cálculo) que os professores sujeitos de sua pesquisa completaram e o desempenho dos seus alunos. Um dos resultados de sua análise apontou que o conhecimento de uma matemática mais avançada por parte dos professores, expresso por terem completado um número maior de disciplinas de matemática, correlacionava positivamente com o desempenho dos alunos somente em 10% dos casos, e negativamente em 8%. O autor concluiu então que a crença de que quanto mais o professor sabe sobre o conteúdo disciplinar mais efetivo será o seu ensino necessitava ser repensada.
        Um outro resultado do trabalho de Begle foi obtido a partir da análise da relação entre o número de disciplinas voltadas para métodos e o desempenho dos alunos. Esta análise revelou que um número maior de créditos em disciplinas voltadas para métodos de ensinar está relacionado com um melhor desempenho dos alunos em 23% dos casos, e mais créditos nesse tipo de disciplinas com desempenho de níveis mais baixos em 5% dos casos.
        Monk (1994) chegou a uma conclusão semelhante: o número de disciplinas de matemática cursadas faz diferença, mas até certo ponto, além de um certo limiar pode ser indiferente ou ter efeito negativo. Além disso, um certo número de disciplinas de métodos contribui mais para ganhos no desempenho dos alunos do que disciplinas de estrito conteúdo matemático.
        Sztajn (2002) menciona que Ball (1991) cita um estudo feito nos anos 60 com 112 000 alunos. Nesse estudo, vinte características dos professores desses alunos foram analisadas, e conclui-se que muitas das crenças sobre o que caracterizava o bom professor eram falsas, entre elas a idéia de que quanto mais alguém sabe matemática melhor professor será.
        Descontentes com esse tipo de estudo que usava o número de cursos freqüentados como uma medida do saber para ensinar e com o reduzido papel do enfoque pedagógico especificamente matemático nos trabalhos sobre formação de professores de matemática, pesquisadores se voltaram para investigar mais de perto a concepção de saber do professor (Shulman, 1986) e a natureza do conhecimento matemático dos professores e o seu papel no aprendizado dos alunos (Wilson,1996; Ball, 91; Fennema ∓ Franke, 1992).
        A pesquisa privilegia então professores da escola elementar, refletindo a suposição de que o conhecimento do conteúdo matemático não é um problema para professores do ensino médio pois estes fizeram um número maior de disciplinas formais especializadas em matemática, o que faz esperar que estejam mais bem preparados em termos de conhecimento disciplinar. Esta suposição não é garantida por algumas pesquisas realizadas entre professores de ensino médio (Ball, 1990; Even, 1993; Post et al., 1991; Knuth, 2002).
        Howe (1999) menciona que as pesquisas realizadas na última década evidenciaram que o conhecimento matemático dos professores tem um papel vital na aprendizagem da matemática pelos alunos. No entanto, parece também que a espécie de conhecimento que é requerida é diferente da que a maioria das formações (inicial e continuada) vêm oferecendo e que não temos atualmente nenhuma estrutura institucional que proporcione o desenvolvimento desta espécie de saber.
        O relatório Mathematics Proficiency for All Students: Toward a Strategic Research and Development Program in Mathematics Education, publicado pelo Rand (2002) recomenda, frente à limitação de recursos disponíveis e a magnitude dos problemas na área de educação matemática, que a pesquisa privilegie três áreas específicas, dentre elas “o conhecimento matemático para ensinar”. O relatório chama a atenção para o fato de que a espécie de conhecimento matemático necessário para ensinar matemática escolar de forma eficiente é diferente da que é necessária para pesquisadores em matemática em si mesma. No entanto, exatamente que espécie de conhecimento matemático é esse que os professores necessitam não é uma questão bem entendida. Nem como esta matemática pode ser aprendida e usada eficientemente no ensino. E acrescenta que uma melhor compreensão dessa questão poderia fornecer uma fundamentação para promover mudanças e propor alternativas na preparação de professores.
        As diversas oportunidades de formação e desenvolvimento profissional oferecidas ou requeridas dos professores têm tido pouco impacto no dia-a dia das escolas. Heaton (2000) aponta como motivo o fato de que não existe um currículo para desenvolvimento profissional, currículo este que leve em conta as práticas que os professores serão chamados a implementar, o conhecimento matemático que essa prática envolve, e a consideração do que já sabem e acreditam.
        Como a nossa compreensão do conhecimento matemático necessário para ensinar é ainda insuficiente, isto significa que vêm sendo dadas aos professores oportunidades inadequadas de desenvolvimento do conhecimento matemático requerido para ensinar bem e a habilidade de usar este conhecimento na prática. Nesta linha de pesquisa, estudamos este processo de “aprender matemática para ensinar” e procuramos propor alternativas de formação docente.
        Não estamos tentando de forma alguma minimizar a complexidade do problema e reduzi-lo a uma das suas variáveis. O desenvolvimento do professor relativo a habilidades e conhecimentos pedagógicos em si mesmo é também de fundamental importância: “o saber restrito a conhecimentos disciplinares pode ser tão inútil quanto habilidades pedagógicas destituídas de conteúdo disciplinar” (Shulman, 1986). Por outro lado, grande parte do que precisa ser melhorado no ensino não tem nada a ver com a preparação pedagógica ou disciplinar dos professores mas com outros aspectos: suas condições de trabalho são muito desencorajadoras em termos de recursos, cercados por demandas múltiplas (muitas vezes contraditórias) vindas de alunos, pais, colegas, escola, estado. Tudo isso acrescido de baixos salários, falta de respeito da sociedade, alienação da comunidade matemática. Muitos professores podem estar mal preparados para a profissão, mas, certamente, eles são dedicados e gostam do que fazem.
        É preciso observar também que a formação dos professores de ensino médio começou uns 13 anos antes de sua entrada na universidade Desde então a sua compreensão da matemática começou a ser moldada, um processo que continuou após sua saída da universidade durante a atividade docente e de desenvolvimento profissional, isto para não falar das influências externas ao mundo escolar /acadêmico que são muito variadas.
        Por outro lado, eles aprenderam mais do que se pode inferir dos variados programas disciplinares cursados. Aulas de conteúdo geralmente têm por objetivo ajudar os alunos a adquirir conhecimento substantivo. No entanto há um currículo oculto nessas aulas, um currículo que é especialmente importante para futuros professores. Durante as aulas na escola básica os alunos também desenvolvem idéias sobre a natureza da área de conhecimento em questão (raramente objeto de estudo explícito - papel de suposições e perspectivas diferentes, como afirmativas são justificadas, diferença entre convenção e construção lógica), adquirem atitudes a respeito do assunto (tópicos de que gostam ou não gostam, consideram que têm facilidade ou dificuldade em matemática) e criam modelos de um bom professor e de uma boa aula. Todos esses conhecimentos irão influenciar a futura atuação profissional dos alunos que se dirigem para a docência
        A educação formal dos professores é mais extensa no período pré-universitário do que após a entrada no ciclo superior. É importante notar que além do período pré-universitário ser maior do que o período universitário, o conteúdo estudado no pré-universitário é bem mais próximo daquele que o futuro professor vai ensinar, e este pode vir a se apoiar no que aprendeu na escola básica na sua prática letiva. Moreira (2004) discute amplamente o distanciamento entre formação e prática profissional de docentes de matemática escolar. Como a pesquisa em ensino na escola básica mostra que raramente os alunos aí desenvolvem uma compreensão conceitual, muitas vezes ficando restritos à memorização de “receitas” desconexas de como resolver tipos de exercícios, não é de surpreender que se encontre professor pouco eficaz. A sua prática pode espelhar a sua vivência escolar, uma experiência que provavelmente esteve marcada por memorizar, imitar, copiar. O que nos leva a concluir o óbvio: é preciso “atacar” todas as componentes do sistema educacional se quisermos a qualificação do ensino como um todo.
        Concordamos parcialmente com Ball e Cohen (1999) quando propõem que a essência da educação profissional de professores deveria se situar na prática de ensinar e ser constituída por estudos sistemáticos de atividades centrais à prática de ensino (selecionar / desenhar tarefas instrucionais, fazer sentido do raciocínio dos alunos, acessar a aprendizagem dos alunos) e deveria empregar materiais que representam o trabalho de ensinar (trabalho de alunos, material curricular, casos de instrução).
        Pensamos que a importância de um desenvolvimento do conhecimento matemático além do que se pretende ensinar, e descontextualizado, é também de fundamental importância até porque a abstração é um dos poderes da matemática, logo, um equilíbrio deve ser procurado. Recentemente, foi possível constatarmos a necessidade de se dar um amplo espaço ao tratamento de conteúdos matemáticos em um curso de formação continuada que coordenamos. Na prova de seleção para aquele curso, da qual participaram 175 professores, 26% não mostraram nenhum conhecimento de um tópico clássico da matemática escolar (raízes de uma equação do segundo grau) e somente 17% acertaram uma questão sobre o mesmo tema.
        Nesta linha de pesquisa, desenhamos, implementamos e analisamos atividades baseadas em “registros de prática” propostas em cursos de formação de professores de matemática de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental e do ensino médio. Registros de prática são documentações relatando episódios da prática letiva, como por exemplo: produções de alunos (objetos de avaliação diagnóstica, formativa ou certificativa), casos de instrução, utilização de material curricular bibliográfico (livros textos, parâmetros curriculares, artigos de revistas especializadas). O objetivo da análise é entender o que parece que é necessário aprender para ensinar certos tópicos de matemática escolar. Um exemplo de investigação neste contexto pode ser encontrado em Palis (2005).
        O estudo da produção de alunos e a análise dos tipos de raciocínio aí presentes podem propiciar aos participantes de formação inicial ou continuada o desenvolvimento de uma base de conhecimentos sobre as concepções dos estudantes. Este desenvolvimento é fundamental para adquirir sensibilidade frente às dificuldades dos alunos, poder dar sentido ao discurso e acessar o aprendizado dos mesmos, preparar e selecionar aulas / tarefas / avaliações. Este tipo de atividade, quando bem escolhida, p.ex., envolvendo resoluções distintas, certas e erradas, é uma estratégia produtiva pela riqueza de pontos de vista que podem aparecer, tanto da parte dos alunos como dos professores.
        Pesquisas relatando os resultados de programas de desenvolvimento profissional de professores de escola elementar têm revelado que a análise do pensamento dos alunos pode promover práticas instrucionais que levam a um melhor desempenho dos alunos (Carpenter ∓ Fennema, 1992).
        O estudo de casos tem sido um método de desenvolvimento profissional usado em direito, administração e medicina há muitos anos. O seu uso em educação de professores (na forma de vídeos, cd-rom, narrativas de práticas letivas, etc.) é mais recente e restrito. Casos representam trechos de prática autêntica, podem descrever problemas não resolvidos colocando uma série de questões, podem descrever situações que “funcionam” ou não, de qualquer forma a idéia na construção de casos é preservar a complexidade do processo de ensino. Contudo casos não são auto-implementáveis mas formam uma base sobre a qual tarefas apropriadas de aprendizagem podem ser desenhadas (Ball ∓ Cohen, 1999).
        A discussão da utilização dos Parâmetros Curriculares Nacionais é importante pelo caráter de referência profissional desses documentos. Dados da literatura também encorajam tais atividades: enquanto Howe (1999) nos diz que a “Ásia tem o sistema de educação matemática mais bem sucedido no mundo atual”, encontramos em Ma (1999) que professores chineses que atuam eficazmente, ao serem perguntados sobre como atingiram seu conhecimento matemático, responderam da seguinte forma “estudando intensivamente os materiais de ensino”. E a autora explica que “materiais de ensino” para estes professores abrangem: os parâmetros de ensino e aprendizagem nacionais, livros textos e manuais para professores, sendo dada bastante importância ao estudo dos primeiros.
        O estudo de artigos de pesquisa também tem um papel importante na formação profissional do docente. Um obstáculo à integração dos conhecimentos adquiridos na prática docente e na atividade de pesquisa acadêmica é a alienação entre os construtores dos saberes nesses dois campos. A maioria dos professores não está familiarizada com as pesquisas relacionadas à sua função educativa até pela dificuldade de acesso às diversas publicações em língua estrangeira.
        Existe também uma crença entre professores de que estudos acadêmicos são irrelevantes para a prática educativa. Estes sentimentos de irrelevância podem ter origem nas expectativas frustradas de que a pesquisa deveria indicar regras de ação confiáveis que pudessem ser colocadas em uso imediato. O trabalho com textos de pesquisa bem escolhidos pode tornar a investigação na área mais acessível e significativa para os docentes, mesmo que não aponte regras de ação explícitas.

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Wilson S.M. (1996). Where´s the mathematics. The competing commitments of professional development. Annual meeting of the AERA.



NOTAS
1Ensino de disciplinas de matemática no centro técnico científico e na formação inicial e continuada de professores de matemática.
2Incluo aqui os conhecimentos relacionados aos conteúdos de matemática de ensino médio que são também abordados no ensino superior inicial, em disciplinas de transição do ensino médio para o ensino superior que recebem diferentes denominações como Pré Cálculo, Introdução ao Cálculo, Cálculo 0, etc., bem como na parte inicial de cursos de Cálculo e de Álgebra Linear. Além, é claro, da matemática ensinada na licenciatura e em cursos de formação continuada de professores.