“Mundo Acadêmico” – professores universitários, práticas de leitura e escrita e diversidade social

Tania Dauster1
Dione Dantas do Amaral
Mônica Guimarães
Sandra Mendes

Introdução

        Este texto tem com objetivo dar continuidade às discussões e artigos que temos feito em torno das práticas de leitura e escrita no contexto de uma universidade localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro.
        O projeto de pesquisa que serve de base a esta reflexão, embora tenha mantido o mesmo campo empírico da pesquisa antecedente, configurou-se a partir de outro ponto de vista. Com isto queremos sinalizar que não é nossa intenção refletir sobre depoimentos e práticas dos estudantes universitários como fizemos anteriormente, mas, sim, tomar agora para análise tanto as práticas quanto os depoimentos de professores desta mesma instituição.
        A questão da formação de leitores é um dos temas que nos impele a investigar as práticas de leitura e escrita, assim como a transmissão da cultura letrada no contexto universitário. Será que o ensino superior forma leitores? Leitores técnicos, leitores literários? O que é formar leitores? Como desenvolver o gosto pela leitura em suas diferentes e múltiplas dimensões? Como os professores se relacionam com as “antigas” e novas tecnologias da leitura e da escrita? Como se dá no cotidiano a transmissão da cultura letrada? Como estas questões se articulam com a chamada “excelência acadêmica” e com a diversidade sócio-cultural dos estudantes?
        Na perspectiva metodológica adotada, buscamos no discurso do universo estudado os significados, valores e representações recorrentes, mas também outras percepções que sem serem reiterativas são relevantes e significativas para os objetivos desta pesquisa. A leitura do material coletado através das entrevistas nos revelou, por outro lado, dados inesperados. Dados que não estavam ainda problematizados por nós, e que neste sentido vieram a constituir-se como nossas descobertas no campo. Cabe mencionar que as entrevistas foram feitas com o intuito de cobrir as perguntas e temas acima citados, considerando ao mesmo tempo uma perspectiva de relato em uma linha de história de vida. O nosso propósito foi captar o ponto de vista dos professores nos seus próprios termos.
        Na medida que por motivos de ofício ou de estudo, o espaço no qual a pesquisa foi realizada nos é familiar, a situação de proximidade passa a compor a nossa problemática e o nosso ângulo de observação (Geertz,C., 2000; Velho,G.2003). Outrossim, a dupla inserção como pesquisador e “nativo” implica num estranhamento do familiar (Velho,G., 1978). Como diz o mesmo autor “familiaridade e proximidade física não são sinônimos de conhecimento” (1980, p.15), palavras que cabem na situação de contato no nosso campo pesquisado. Isto porque, mesmo partilhando com os professores entrevistados um cotidiano universitário, nem por isso poderíamos dizer que conhecíamos o ponto de vista deles sobre uma série de assuntos que serão aqui tratados.
        A nossa atitude de estranhamento levou-nos também a buscar como esses professores classificavam e organizavam a sua experiência profissional, assim como as suas representações e práticas.
        Antes de iniciarmos as nossas reflexões, é importante transmitirmos os nossos sentimentos sobre esta viagem em torno de nós mesmos. Na medida em que líamos os depoimentos duas emoções nos afetavam. Uma traduz-se pelo privilégio do contato com este grupo pertencente a uma elite acadêmica e a outra pela confiança que em nós foi depositada pelos seus integrantes. Além disso, admiramos as qualidades intelectuais e de sensibilidade de todos os professores. Por tudo isso, acreditamos, que os resultados de nossas interpretações são apenas aproximações à riqueza e à densidade dos depoimentos que nos foram generosamente dados. Esclarecemos, ainda, que o texto se divide em seis itens: O Contexto Universitário; O Gosto pelos Livros; Entre o manuscrito e o digital: as práticas de escrita e de leitura; A Aula, A Pesquisa e A Excelência Acadêmica; Os Estudantes e Considerações Finais.

O contexto universitário – uma descrição física e social a partir dos professores
        Se tivéssemos que rapidamente apresentar a universidade investigada, poderíamos fazê-lo, conforme a descrição que se segue abaixo.
        Essa instituição universitária situa-se na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma universidade de orientação religiosa, particular, vista como de elite, que vem desenvolvendo de maneira cuidadosa um sistema filantrópico para poder abrigar estudantes de setores sociais não privilegiados economicamente, disponibilizando vários tipos de bolsas para estes estudantes, inclusive as bolsas de ação social. Esta categoria de bolsa além de liberar o aluno das mensalidades, pode significar outros tipos de ajuda. Por exemplo, apoio para passagem, alimentação, fotocópia, impressão de trabalhos digitados, entre outros itens necessários ao dia a dia do aluno, concedidos através de minuciosa avaliação dos recursos de cada candidato (Candau, V. 2003).
        É uma universidade que se distingue no cenário nacional. Tem ex-alunos que se destacaram na vida política e econômica do país e muitos de seus cursos de pós-graduação alcançam altas avaliações pelos critérios das agências de fomento.
        O nosso universo pesquisado é pequeno, mas significativo, permitindo abrir hipóteses sobre as atitudes de um número maior de docentes neste espaço. São nove professores pertencentes aos seguintes departamentos: Psicologia, Física, Filosofia, Serviço Social, História, Letras, Matemática, Desing e Educação. São sete mulheres e dois homens, situando-se quanto à idade entre 39 e 70 anos na ocasião de nossas entrevistas. Todos com exceção de uma professora pertencem ao quadro principal da instituição e trabalham em regime de tempo integral. Têm doutorado, alguns já fizeram o seu pós-doutorado, se definem como pesquisadores e orientadores. São autores e como veremos intensamente envolvidos com distintas práticas leitoras. Têm filhos, com exceção de uma das mulheres que é solteira. Como é de praxe, estaremos usando nomes fictícios para mencioná-los.
        Vale explicitar que a seleção dos entrevistados foi feita considerando-se a rede de relações da equipe da pesquisa, faceta metodológica característica das investigações na própria sociedade do pesquisador.
        Comecemos nossos comentários através da forma pela qual os professores vêm o seu espaço físico e social de trabalho, que chamamos o campus. As dimensões relativamente pequenas do campus da universidade, se comparadas a outros campi, aparecem aos olhos dos professores como uma qualidade que leva à integração entre estudantes e professores de diferentes departamentos, permitindo por isto mesmo um “olhar transversal sobre o conhecimento” (Joana).
        A estrutura física é vista como um convite ao exercício de transdisciplinaridade que surge como um valor acadêmico e que se revela no trânsito de estudantes pelas distintas áreas de saber. Para esta professora, sem dúvida, são os elos que se tecem entre as disciplinas aqueles que caracterizam na sua plenitude a idéia de universidade.
        Nos mesmos horizontes de Joana, Carmem acredita que a perspectiva atual de construção do saber passa pela interdisciplinaridade. Para ela não se pode trabalhar um objeto no seu strictu sensu, ou seja, sem construí-lo nas relações entre os diferentes saberes.
        Os professores são unânimes no seu apreço pelo espaço físico da universidade. Não é raro vê-lo como um “ambiente maravilhoso”. Helena vê a natureza circundante, o bosque que enche os olhos de verde e os pulmões de oxigênio e o riacho, como fatores coadjuvantes no estabelecimento de um clima acadêmico da melhor qualidade.


Aquele oxigênio entra no nosso cérebro. Cada vez que a gente atravessa de um edifício para o outro, a gente respira, os alunos respiram também. É muito interessante que se possa conviver com alunos de outras áreas (Joana, Letras).

        É curioso ver como os depoentes estabelecem relações entre o espaço físico pequeno, concentrado e prazeroso da universidade e os valores que remetem tanto à sociabilidade (Simmel, G., 1978) gratuita entre alunos e professores, quanto a outras práticas de convívio acadêmico expressas nas articulações interdisciplinares que são pertinentes à esfera da construção do saber universitário.
        No discurso tanto de Helena, quanto de Paula, emerge um outro valor associado a este mundo acadêmico. Trata-se da sua dimensão humanista. Para elas esta faceta pode ter como razão de ser o ethos católico da instituição. É neste sentido que Paula vê como fundamental “o saber ligado à construção de valores”, segundo ela algo que existe nesta universidade e sobre o que falaremos mais tarde. No entanto, a mesma professora faz uma ressalva relativizadora, uma vez que acredita serem os valores humanistas identificáveis tanto no catolicismo como em outras religiões.
        A chamada face humanista da universidade é um dado recorrente nos depoimentos deste universo. Nas palavras de Carmem:

Eu gosto muito desta universidade, porque inspirada por estes princípios cristãos e humanistas, mesmo vivendo essas contradições de agora, ela tenta, vamos dizer, neutralizar certos problemas dessa nossa modernidade.

        Existe uma outra marca na universidade que é apresentada como algo que a singulariza, aos olhos dos professores. Beatriz aponta para as “condições de trabalho inegáveis, embora ameaçadas pela queda de financiamento público”. “Um espaço agradável, uma biblioteca com um sistema de empréstimo que funciona, um clima de trabalho”, características que “geraram uma cultura acadêmica forte”, envolvendo alunos e docentes.
        Dando continuidade aos seus posicionamentos, vejamos: “A valorização do estudo, da seriedade” é, sem dúvida, característica da identidade religiosa desta instituição. Ela frisa, ainda, um outro ponto importante, ou seja “o respeito à diversidade religiosa” e a “existência de um diálogo inter-religioso”. Neste contexto, a professora valoriza o trabalho filantrópico da universidade que vem permitindo a convivência de estudantes de diferentes classes sociais e de estilos de vida distintos. Nas palavras de Beatriz, “hoje tem um terço dos alunos que são provenientes de classes populares... A cor da universidade é outra”. Tais argumentos não deixam de considerar que em tempos passados já havia aí alunos dos setores pobres da sociedade, filhos de funcionários ou, então, estudantes ligados a movimentos da Igreja no corpo discente. Entretanto, a intensidade do que hoje ocorre mostra que “nesse sentido, ela é outra universidade”. Existe, pois, nos diz ela, um processo em marcha, há aproximadamente dez anos, operando com concessão de bolsas integrais, apoio à compra de xerox, transporte e alimentação, que mesmo com contradições favorece uma diversidade étnica e social no interior da universidade. Outro ponto positivo neste histórico apresentado é o estabelecimento de convênios com os pré-vestibulares comunitários que segundo a mesma professora repercutem sobre as questões das etnias.
        Há contradições nesta percepção desse espaço? Sem dúvida. Pode-se também verificar na abordagem crítica dos professores que embora percebendo de forma muito positiva a instituição em que trabalham, vêem problemas na sua organização. Estes passam, por exemplo, pela “renovação de quadros”, pela “sobrecarga dos professores” incitados por “uma cobrança de produção” que desafia o tempo a ser dedicado ao ensino.
        Do ponto de vista desta mesma professora, outras mudanças podem ser detectadas na cena acadêmica nas duas últimas décadas do final dos anos XX, tanto positivas quanto negativas. Neste passado não tão remoto, havia uma expressiva associação de docentes vivenciando um “processo de debate coletivo muito intenso”. Um dos grandes embates referia-se a um “modelo de universidade mais voltado a chamada excelência acadêmica” vis-à-vis “um outro modelo que, valorizando a excelência acadêmica tinha um compromisso social muito forte”. Em outras palavras, uma preocupação sobre o “impacto de seu trabalho na sociedade”.
        Para Jorge, a universidade tem pouca vida cultural. Yale, onde fez seu pós-doutorado, em contraste, tem cinema na universidade duas ou três vezes por semana. Helena aponta também para uma decadência geral do ensino, critica uma suposta visão utilitarista da universidade, o aumento de lojas e bancos no seu interior, colocando-se na contramão daqueles que sustentam a ênfase na relação da universidade com o mercado de trabalho, uma vez que ela acredita que o aluno “está na universidade para pensar, ele está na universidade para se educar”. A mesma professora reflete sobre a necessidade de incentivar os alunos a pesquisar. Helena lamenta o caráter quantitativo da avaliação feita pelos órgãos federais que conduz a uma banalização da produção, uma vez que esta passa a ser vista em função de números de artigos, deixando a questão da qualidade de lado.
        Quisemos trazer as definições dos professores sobre seu próprio espaço de trabalho que curiosamente se entrelaçam com uma determinada concepção de prática acadêmica. Em princípio este movimento nos permite dar a conhecer melhor tanto os professores quanto o nosso lócus de pesquisa.
        Candau (ibid, p.123) percebeu entre os professores entrevistados que eles se sentiam gratificados pelo “convívio com os/as colegas e os/as alunos/as, o clima e o ambiente de trabalho, a vida no campus que favorece o intercâmbio entre os departamentos, a infra-estrutura acadêmica, facilitando, inclusive, o trabalho de pesquisa. Tudo isto criando condições para o desenvolvimento pessoal e acadêmico dos/as profissionais”.
        Em resumo, vimos, como Candau, que se trata de um espaço social cujos princípios, padrões de convivência e características ecológicas são importantes para os entrevistados, por serem traços que compõem a trama de seus trabalhos. Chamamos atenção para as condições de trabalho, para o espaço físico agradável, “oxigenado” e cheio de verde das árvores e plantas, para a concepção humanista preservada na convivialidade, para uma cultura acadêmica forte que valoriza o ensino e a pesquisa, para o respeito em relação à diversidade religiosa e étnica e para a sua dimensão filantrópica.

O gosto pelos livros

        Embora os professores entrevistados não usem a categoria autor, todos o são, uma vez que são profissionais com mestrado e doutorado, publicam livros e artigos. São possuidores de livros de suas especializações e de literatura, coleções de revistas de interesse mais universal, como a New Yorker e de outras coleções temáticas importantes em suas áreas. Dois dentre eles se classificam como “consumidores” de livros. Rubens, por exemplo, diz “sou mais consumidor de livros que leitor”. Compra livros em congressos e tenta manter uma biblioteca atualizada para poder emprestar aos alunos. Ocupando atualmente um cargo administrativo, o tempo que lhe sobra é reservado para as leituras de trabalho, tais como teses e dissertações, as chamadas “leituras obrigatórias” feitas “virando a noite”.
        Beatriz também declara:

Eu sou uma consumidora de livros. Compro meus livros. Eu tenho quase quatro mil livros em casa. Eu e meu companheiro, que é também professor universitário. Então, fora todos os livros que eu tenho aqui enfiados em todos os armários, eu tenho uma loucura por ter livro.

        Este é um dado recorrente entre os professores. Comprar livros, guardá-los tanto na universidade quanto nas suas bibliotecas pessoais, adquirí-los com verbas de pesquisa, emprestá-los a alunos e eventualmente a colegas e doá-los às bibliotecas.
        Diante da categoria “consumidor(a)” de livros, é importante trazer a reflexão de Chartier (ibid., p. 59), que vê que o consumo cultural ou intelectual pode ser ele mesmo pensado enquanto uma produção ou como uma “outra produção” afastando-se assim qualquer noção de passividade que lhe possa ser identificada.
        A aquisição de livros é um ato que simboliza um padrão de consumo e um estilo de vida. É interessante frisar que os livros representam um “bem” cultural, imaterial e muito estimado. Alguns entre eles nem podem entrar no sistema de empréstimos e troca de publicações que faz parte da sociabilidade entre professores e seus colegas ou alunos. Outros são escondidos e entesourados como um “bem” cuja relevância deve ser preservada de forma individualizada e restrita ao próprio individuo e a seu trabalho intelectual.
        Esta é uma faceta deste universo, ou seja, o valor dado à própria produção ou a produção intelectual como valor, o prestígio da obra realizada que representa uma distinção (Bourdieu, 1979) no campo disciplinar e entre os pares, meta a ser alcançada e, alvo de investimentos consideráveis.
        Retomando a questão do gosto por livros, vemos que a sua posse vai além de suas possíveis razões práticas. Possuir e adquirir insere-se em uma lógica simbólica na qual o objeto livro é emblema revelador de gostos, marcado pelo prazer sensorial de olhar, cheirar, manusear, além do próprio prazer intelectual. É tanto um distintivo quanto objeto que produz distinções, diferenças e hierarquias, além de revelar tradições disciplinares.
        Helena assim se expressa:

Eu não gosto de ler em xerox, eu gosto do livro. Eu adoro livro, eu pego o papel do livro, eu sinto a textura do papel, eu gosto da capa, eu gosto de um livro que tenha uma bela capa, eu gosto de um livro elegante, eu gosto de uma letra boa. Incomoda-me ler um livro que está mal diagramado, eu sou uma bibliófila. Eu gosto de livros... Eu me lembro de todos os livros que eu estão na biblioteca pela forma deles, pela cor deles. Parece um monte de frutas. Uma amarela, outra verde...

        Pierre Bourdieu (1983, p.83) em um artigo intitulado “Gostos de classe e estilos de vida” assim se expressa: o “gosto, propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras, é a fórmula generativa que está no princípio do estilo de vida”.
        Uma vez que o mesmo autor diz que as preferências distintivas expressam o estilo de vida, vemos que os livros ocupam um espaço emblemático na visão de mundo dos professores, simbolizando a sua própria posição social.
        Sem retirar a importância do livro como objeto e texto, vale examinar as palavras de Rubens. Este professor, discutindo livros e leituras, admite não ter “o livro como única forma de gerar conhecimento ou coisas, pois já fez filmes e fotografia, o que é uma forma de escrita”. Sem dúvida, tais colocações ampliam as concepções das práticas de escrita e leitura e mostram que do ponto de vista etnográfico estas ações têm outras definições igualmente pertinentes.
        Associando-nos a autores como Roger Chartier e Viñao Frago, estabelecemos laços interdisciplinares entre a história cultural e a antropologia cultural com a finalidade de produzir uma etnografia de leitura e escrita no contexto universitário. Neste sentido, o livro como símbolo foi analisado nos seus contextos de uso e significado. Como símbolo, o livro sintetiza o ethos desse grupo entrevistado, ou seja, “o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas” e sua visão de mundo (Geertz, C., 1978, p.103).
        Vale acrescentar mais algumas palavras sobre a questão do “consumo”. Ao constatar que dois entre os professores se definem como “consumidores” de livros, um sentimento de estranhamento apossou-se de nós, tal a carga negativa que esta categoria possui no senso comum.
        Parecia-nos surpreendente a associação entre os dois termos. Daí a importância de trazer para iluminar nossa descoberta etnográfica, a teoria de Mary Douglas (2004) sobre a lógica antropológica do consumo.
        Essa autora ao deslocar a problemática do consumo da esfera da publicidade para a dimensão da cultura constituiu-se como referência para estudos posteriores no campo da antropologia do consumo.
        De que nos fala a antropóloga e de que modo ela abre horizontes para interpretar as atitudes de nossos entrevistados?
        Para a autora “os bens são como bandeiras” (ibid, p.43). Em outras palavras, os bens funcionam como sinais e, portanto, são comunicadores. Enquanto “bens têm outro uso importante: também estabelecem e mantêm relações sociais” (ibid, p.105).
        Uma vez que sabemos que não é o objeto em si mesmo que encerra a força simbólica, mas é o uso que dele se faz nas relações cotidianas, vemos que é assim que o livro se torna símbolo e signo nesta “tribo”.
        Assim sendo, a posse e o uso de livros como bens de consumo caracterizam a cultura material desta “tribo” configurada a partir de “equipamentos fixos” (ibid, p.105), ou seja os livros, impressos e outros suportes e ferramentas próprios da cultura letrada.

Entre o manuscrito e o digital: as práticas de escrita e de leitura

        Para o historiador Roger Chartier (1998), a revolução do texto eletrônico é, conjuntamente, uma revolução da técnica de produção e de reprodução de textos, uma revolução do veículo da escrita e uma revolução das práticas de leitura, daí a sua diferença em relação às mudanças anteriores. O campo tecnológico permitiu o nascimento e a expansão de novas mídias que não apenas significam um novo suporte para a escrita, mas também instauram novas maneiras de pensar. A tecnologia dos computadores pessoais vem desenvolvendo novas linguagens, estratégias e possibilidades, transformando os contextos em que se escreve e o que se escreve, ou seja “tanto la naturaleza del acto de escribir como la escritura y la lectura” (Vinão Frago, 1999, p.347). Através das telas dos computadores temos uma gama imensa de escritas e suas variadas funções: documentária, epistolar, literária, didática etc. A comunicação eletrônica dá aos textos uma maleabilidade e uma abertura desconhecidas anteriormente.
        Como os professores vêm lidando com estas transformações da escrita/leitura? Quais as representações e práticas a respeito desta “nova escrita?” Quais os usos do computador e da internet no contexto universitário? Como e em quais ocasiões praticam a escrita à mão? Quais os significados destas escritas?
        Sabendo da importância de relacionar os discursos proferidos com o “lugar” de onde eles partem, lembramos que o grupo estudado tem uma peculiaridade que, de imediato, fica evidente. Trata-se de pessoas com alta competência para a prática de leitura e da escrita, uma vez que tais fazeres (ler e escrever) são parte inerente e substancial da profissão de professor. No âmbito desta “comunidade de leitores” (Chartier, 1998), partilham saberes e habilidades, gostos, preferências e hábitos relacionados à cultura da escrita e da leitura. Assim sendo, não significa dizer que suas práticas sejam idênticas, pois, cada um, a partir de suas próprias referências individuais, sociais, históricas e existenciais, dá um sentido próprio ao que lê e ao que escreve, mais ou menos singular, mais ou menos partilhado.
        Uma primeira observação a ser feita é que a maioria dos entrevistados pratica a escrita à mão com regularidade e também faz uso da escrita digital nas suas atividades diárias. Percebe-se que uma prática não exclui a outra, variando apenas a freqüência e intensidade de uso de um ou outro suporte. No depoimento a seguir, o único professor que diz praticamente não escrever mais à mão é Rubens. Ele relata sua preferência pela escrita eletrônica:

“A nossa geração aprendeu a ler em papel, essa é a verdade. Eu não escrevo mais em papel há muito tempo, só faço rabiscos. Escrevo em computador. Até porque mexo muito com números e, hoje em dia, até um bilhete, eu faço tudo na tela. Perde-se a lógica”.

        Quando Rubens diz “perde-se a lógica”, está se referindo, provavelmente, às novas operações intelectuais associadas a este novo suporte - a tela. Vale lembrar que para R. Chartier (2002), está posta uma diferenciação entre uma lógica mais linear, seqüencial e dedutiva, relacionada aos manuscritos e impressos e outra que se desdobra de forma simultânea e relacional, própria do mundo digital.
        Há que se pensar, ainda, que nos manuscritos e impressos é possível a variação da forma do objeto para distintas classes de textos, em oposição ao suporte eletrônico, onde diferentes categorias de textos são dados à leitura num formato único, a tela do computador. Isto, sem dúvida, implica em uma nova maneira de construir os significados dos textos. Saímos da materialidade do livro, com seus limites fixados e estabelecidos, para a “imaterialidade de textos sem lugar específico” (Chartier, 1994, p.101).
        Esta nova prática de leitura implica, ainda, em novos usos do corpo, novos gestos e posturas que são tidas, por muitos, como desconfortáveis, uma vez que limitam os movimentos de quem lê e escreve. Rubens e Carmem criticam o objeto computador no seu aspecto material e físico. Para ela, a luz da tela incomoda os olhos. Para ele, estas “máquinas” ainda são pouco confortáveis e necessitam ser aperfeiçoadas. “É muito ruim um computador só naquela posição. Eu acho que ninguém gosta muito de ler em tela”. Apesar da crítica ele acena para uma melhoria neste aspecto: “Daqui há dois, três anos, você vai ter um laptop maleável, o e-book”. Assim, segundo ele, as gerações mais jovens vão gostar ainda mais de ler na tela pois, o formato e as características físicas do objeto serão mais confortáveis para o usuário.
        Sem dúvida, entre o suporte em papel (livros, cadernos etc) e o aparelho computador (mesmo portátil), verificam-se duas relações entre o corpo do leitor e o texto a ser lido/escrito, bem diferentes. De um lado, o formato em livro, caderno etc, parece mais amigável para se transportar e se abre mais facilmente à leitura, do outro, o peso do aparelho e a mediação do teclado condicionam novos gestos e posturas para a leitura e a escrita, nem sempre agradáveis e que necessitam de aprendizado para o uso correto.
        Conforme os depoimentos dos professores, a escrita digital faz parte das práticas cotidianas de quase todos eles. Podemos então questionar: O que é que se escreve à mão? O que se escreve no computador? Quais os usos e funções destas escritas? O que as caracteriza e as diferencia?
        Uma primeira constatação é que o e-mail, a correspondência eletrônica na rede internet, é o tipo de vídeoescritura mais utilizado pelos professores. A troca de mensagens é uma prática recorrente e incorporada à rotina acadêmica. Esta forma de comunicação escrita é intensa na comunidade de professores, e entre estes e os alunos, não somente da mesma universidade como as de fora do estado e do país. O teor destas mensagens é, geralmente, relativo ao trabalho: são trocas de informações, avisos sobre cursos, lista de exercícios, datas de eventos, convites para palestras etc. A comunicação digital, por sua vez, apresenta características peculiares ao meio eletrônico. A mais evidente é a sua concisão e objetividade. Os usuários da rede sabem que a regra é não se estender demais na mensagem. É a “netiqueta” (a etiqueta a ser observada pelos usuários da rede) como diz uma estudiosa do assunto, Nicolaci-da-Costa (1998). O estilo desta forma de escrita, também tem características próprias. Ele prevê certas convenções como: deve-se evitar usar acentos, cedilha e til (devido à compatibilidade de programas usados); usa-se abreviações do tipo vc (você), bjs (beijos) etc; quando se quer enfatizar uma palavra, deve-se colocá-la entre asteriscos (*exemplo*); uma palavra escrita em letras maiúsculas significa que a pessoa está GRITANDO. A regra básica, contudo, é mesmo escrever pouco. Sobre isto escreve Nicolaci-da-Costa (ibid, p.178):

Esta é a regra básica da comunicação via internet e nada faz supor que venha a sofrer transformações. Vale para os chats e vale para o e-mail. Tudo deve ser rápido, objetivo e econômico. Não há tempo a perder porque não há tempo para fazer tudo o que se quer porque se quer sempre mais do que se pode. Objetividade e precisão são, portanto, necessárias.

        Esta objetividade e rapidez com que as mensagens circulam entre a comunidade acadêmica é um dos pontos considerados como positivos uma vez que liberam os professores para outras atividades. Há, no entanto, tensões neste aspecto, uma vez que, mesmo facilitando o cumprimento das tarefas, também veicula novas demandas que chegam na tela. Segundo Beatriz, “em cada e-mail você tem uma demanda de trabalho. É uma entrevista que te pedem por e-mail, é sugestão de bibliografia, é um encontro para atender”. Por sua vez, a rapidez da mensagem eletrônica leva às escritas abreviadas que, para Carmem, são formas inexplicáveis de escrever, “é uma agressão à língua”. Para muitos usuários da rede, principalmente os mais jovens, a escrita digital deve ser ágil, acompanhar a rapidez do pensamento, por este motivo abrevia-se. Até que ponto este tipo de escrita prejudicaria a língua oficial padrão? Esta é uma questão que vem sendo alvo de vários estudos a respeito, com toda a polêmica que a envolve. Não iremos aprofundar tal assunto aqui, mencionaremos, apenas, que entre os professores entrevistados, esta forma de escrita abreviada não é utilizada, mesmo entre os usuários mais assíduos da rede.
        Praticamente todos os entrevistados mencionam o pouco tempo que têm para dedicar-se mais às leituras, para escrever, para preparar uma boa aula. Parece-nos, que tentar entender leitura e escrita no momento atual é considerar além das transformações do suporte que as materializa, também a influência da aceleração dos ritmos contemporâneos de vida que, por sua vez, estão intimamente relacionados à criação destas novas tecnologias. Esta aceleração é vista associada a mudanças não só nos valores dos indivíduos bem como nos seus padrões de comportamento.
        Helena, professora de Filosofia, diz que entrega os seus trabalhos quase sempre no último dia, pois não gosta de se sentir pressionada. Para ela não interessa a quantidade, mas a qualidade dos mesmos. “Eu leio com muita calma. Tenho uma coisa com o tempo assim, eu não deixo ninguém me apressar”.
        Cíntia gosta de escrever à mão, escreve muito, tem vários livros publicados. Ultimamente por uma questão de saúde vem reduzindo seu ritmo. “Eu me obrigo a descansar, porque durante muitos anos eu escrevia o fim de semana inteiro. O máximo que faço agora é ler alguma coisa”. Rubens sonha em ter um tempo livre, para ler os livros recém publicados da sua área que comprou, mas teve que deixá-los esperando na estante. Ele, no entanto, lê muito na tela, uma vez que alguns trabalhos do Design, só estão disponíveis na versão on line.
        Por outro lado, “o tempo não existe em si” conforme diz N. Elias (1998). Ele é um símbolo social, “resultado de um longo processo de aprendizagem e que se desenvolveu em relação a determinadas intenções e tarefas específicas dos homens” (ibid, p.15). Refletindo sobre a chamada pós-modernidade e os efeitos do novo capitalismo sobre o mundo do trabalho, R. Sennett (2004, p.27) diz que “é a dimensão do tempo no novo capitalismo, e não a transmissão de dados ‘high-tech’, os mercados de ação global ou o livre comércio, que mais diretamente afeta a vida emocional das pessoas fora do local do trabalho”.
        Nos usos deste tempo para ler e escrever, os professores se organizam de modo diferencial a partir de suas disposições, seus gostos e suas habilidades. Ao utilizarem as formas mais tradicionais de escrita e leitura, assim como a nova escrita eletrônica, eles tentam simultaneamente, otimizar este tempo e manter a qualidade do seu trabalho. Mas, se a “ansiedade pessoal com o tempo está profundamente entrelaçada com o novo capitalismo” como sugere Sennett (ibid, p.114), como escapar dos seus efeitos, se vivemos sob este regime?
        Não é preciso enfatizar que o uso da escrita na tela não se reduz ao envio de mensagens. Ainda que este seja o uso mais freqüente, vários professores disseram escrever diretamente na tela ao preparar seus trabalhos, mesmo que antes, tenham feito um rascunho ou um pequeno esquema do mesmo, à mão. Por quê é necessário este esquema prévio no papel? O que se escreve diretamente na tela e o que precisa de um ensaio manuscrito? Quando é necessário o rascunho à mão? São as questões que tentaremos discutir agora. Como dissemos anteriormente, o manuscrito é utilizado com muita freqüência neste grupo de professores. Pelos depoimentos percebe-se que é uma prática fundamental na execução de trabalhos onde há necessidade de uma maior elaboração intelectual. As primeiras idéias, o início do processo criativo, parecem surgir melhor no papel. Vários dos entrevistados disseram fazer um manuscrito prévio com esquemas e notas para só aí, então, partir para a escrita no computador. A fala da professora Helena é bem significativa neste aspecto da criação manuscrita do texto:

Eu sempre gostei de escrever, mas, quando eu entrei para a universidade eu não escrevia bem. Eu fui escrevendo conforme eu fui pensando, e fui elaborando e fui, também, exercitando. É um exercício. Gosto muito de escrever. (...) Então a escrita filosófica é arte para mim. (...) Eu vejo como uma pequena obra literária. Então eu tenho cuidado com as palavras, eu passo horas pensando onde vai ficar a vírgula, e horas... (...) Eu até gostaria de ser mais pragmática, de sentar no computador e escrever como se eu estivesse fazendo um relatório. Mas não. Eu tenho que deixar aquela idéia fervilhar dentro de mim, a minha bochecha ficar corada, eu ficar toda emocionada, aí eu vou lá e escrevo.

        Para Helena o processo criativo se dá através da escrita à mão. O computador é bem vindo, mas, numa etapa posterior, para os ajustes finais do texto. Ao escrever seus trabalhos à mão, ela relata alguns rituais que gosta de seguir como, por exemplo: usar um papel especial, “da papelaria União, que é mais grosso, e uma lapiseira 0.7, mais macia”. A escrita manuscrita é tida como um ato de prazer e de envolvimento pessoal, que exige dedicação.
        Para alguns, a escrita na tela parece, muitas vezes estar associada à frieza, ao pragmatismo e à funcionalidade, sem envolver qualquer componente emocional para a sua execução. Ao contrário, a escrita à mão é a que melhor expressaria a dimensão emocional daquele que escreve. No preparo de suas aulas, Paula diz que gosta de fazer seus escritos à mão, pois aí há um envolvimento afetivo, diferente das tarefas administrativas, nas quais usa o recurso eletrônico.

Para o trabalho de direção eu uso muito o computador. Agora, a aula, é o meu coração... é aquilo em que estou envolvida totalmente. (...) Eu tenho coleções de cadernos assim, de aula, à mão, entendeu? Tem algumas que eu faço no computador mas, eu não gosto. Eu tenho aulas preparadas no computador mas eu acho muito impessoal, eu não gosto. Eu tenho meus caderninhos que eu faço assim, minhas aulas ali.

        Verifica-se, então, que no espaço universitário convivem tanto as práticas de escrita manuscrita, preferíveis quando se trata das coisas do “coração”, quanto às práticas de escrita na tela, vistas por alguns como “frias”. Depreendemos, desta forma, veículos e instrumentos de escrita compondo um sistema binário e classificatório que contrasta o “coração”, o íntimo, o caloroso e afetivo do manuscrito, com o dado numérico “impessoal” do suporte digital, por vezes interpretado como “frio”.
        É importante frisar que uma mudança cultural relevante vem se instalando no cotidiano dos professores e de suas práticas. A cultura material desta universidade pesquisada vem se modificando intensamente desde a década de 1970, com o sentido de incorporar os elementos da tecnologia digital. Isto implica numa transformação dos meios de comunicação e de ensino, mas vem também, alterando as relações de trabalho, sejam elas de ensino, pesquisa ou administrativas.
        As relações sociais como vão sendo reveladas mostram não só a convivência e o uso das novas tecnologias digitais como, também, a manutenção de outras tecnologias ligadas ao lápis, ao papel e a caneta. Ou seja, pode-se dizer, que existem pelo menos dois estilos acadêmicos geradores de sociabilidade e rituais distintos nos diferentes níveis de ensino, pesquisa e administração.
        Praticamente todos os professores classificados como de tempo contínuo têm seus computadores, em muitos casos, comprados com a própria verba de pesquisa. Conclui-se que do ponto de vista material, mas não somente, existe uma intensa troca entre os professores e a instituição, que, desta maneira, são parceiros em vários sentidos.
        Pelos relatos dos professores, podemos perceber que a escrita digital e a escrita à mão apresentam, muitas vezes, usos e funções diferenciados. Vimos que para a comunicação rápida e objetiva, a escrita eletrônica, através dos e-mails, é um recurso amplamente utilizado. Como foi mencionado, para construções teóricas mais elaboradas, no entanto, como a construção de um texto ou um artigo, muitos professores utilizam um rascunho prévio feito à mão. Em alguns casos, o manuscrito nem passa para o suporte eletrônico, como algumas aulas, por exemplo. Por quê isto ocorre? Será uma dificuldade de lidar com as novas tecnologias? Será um apego às práticas familiares e interiorizadas? Sabemos que o computador oferece possibilidades antes impensáveis na confecção de um texto. Pode-se colar, transferir, copiar, mover trechos de um local para outro etc, ainda assim, para muitos, este não é o recurso preferido. Conforme Chartier (1998), a revolução do texto eletrônico é tanto uma revolução das estruturas do suporte material do escrito como das maneiras de ler e de escrever. Estas mutações comandam, inevitavelmente, novas maneiras de ler, novas relações com a escrita e com as novas técnicas intelectuais. Em relação à leitura e fazendo o contraponto entre ler na tela do computador e ler no suporte papel, principalmente quando este suporte é o livro, percebemos que a preferência dos professores recai sobre este último. Os entrevistados foram unânimes ao afirmar que preferem ler no texto impresso.
        Segundo os depoimentos, ler na tela, quando o texto é longo, quase sempre é uma tarefa desagradável e cansativa, por motivos como: o cansaço do corpo que não pode variar muito de posição, obrigando o leitor a permanecer sentado; a luz da tela que incomoda os olhos; a impossibilidade de levar o computador (excetuando-se o laptop) para todos os lugares e a “frieza” do próprio aparelho que, pelo formato, não seria o suporte mais adequado para determinados tipos de leitura como um romance ou os clássicos da literatura, por exemplo.
        Helena assim se expressa:

Eu não gosto de ler em xerox, eu gosto do livro. Eu adoro livro, eu pego o papel do livro, eu sinto a textura do papel, eu gosto da capa, eu gosto de um livro que tenha uma bela capa, eu gosto de um livro elegante, eu gosto de uma letra boa. Me incomoda ler um livro que está mal diagramado, eu sou uma bibliófila. Eu gosto de livros... Eu me lembro de todos os livros que estão na biblioteca pela forma deles, pela cor deles. Parece um monte de frutas, uma amarela, outra verde...

        Voltando, ainda, ao ato da leitura, segundo os depoimentos, ler na tela, quando o texto é longo, quase sempre é uma tarefa desagradável e cansativa, pelos motivos, já citados, das características físicas do suporte.
        Por sua vez, o livro é um objeto querido e apreciado pela sua praticidade e facilidade de manuseio, permitindo leituras mais livres. Os professores disseram gostar da forma física do objeto, do cheiro da tinta, do toque do papel e do fato de poder mantê-lo confortavelmente entre as mãos. Pelos relatos percebe-se que esta é uma comunidade de leitores que pratica a leitura tanto por necessidades profissionais quanto por gosto e prazer sendo que o livro é o objeto privilegiado principalmente quando estas leituras envolvem o prazer e a fruição.
        Isto posto, não significa dizer que leituras mais longas em frente à tela não sejam realizadas. Lembramos que há descontinuidades e heterogeneidades no interior do grupo. Embora prefiram o livro como suporte, vários professores disseram utilizar o computador para ler textos de alunos ou textos de autores cujos trabalhos estão disponibilizados na rede etc, leituras estas, que demandam, algumas vezes, horas em frente à tela. Para estes, tal atividade não representa esforço adicional, ao contrário, é um habito já incorporado á rotina de trabalho. Para outros, no entanto, um texto longo na tela torna-se cansativo e desconfortável. Beatriz prefere utilizar a tela mais para leituras de mensagens. “Se vem alguma coisa para ler, eu logo imprimo” diz. Imprimir os textos que aparecem na tela para, aí sim, começar a ler é uma prática comum para alguns deles. Carmem, em seu relato, diz que o objeto livro é fonte de prazer, gosta de ter o livro na mão, do encadernamento, do tipo de impressão etc. Para ela, a leitura prazerosa precisa de disponibilidade e de um tempo de entrega: “Você lê, às vezes, põe o dedo assim e fecha um pouco o livro, deixa a cabeça ir embora, entende?”. A tela é pouco utilizada por ela. A luz incomoda os olhos e não se sente confortável. Segundo Chartier (1994), as formas materiais nas quais os discursos são dados a ler comandam sentidos e impõem gestos atrelados a esta materialidade que, dentro de uma mesma “comunidade de leitores”, podem ser diferenciados.
        Conforme o autor “mais do que nunca, historiadores de obras literárias e historiadores das práticas e partilhas culturais têm consciência dos efeitos produzidos pelas formas materiais” (ibid, p.8). Daí a importância de estar atento aos dispositivos técnicos, visuais e físicos que organizam a leitura do texto escrito, nos vários objetos que lhe servem de suporte.
        Podemos crer então, que a preferência pela leitura no livro também está relacionada à materialidade do objeto e à maneira como os textos são dados a ler neste tipo de suporte. Podemos dizer, sem dúvida, que ao abrir e folhear um livro, tocar suas páginas, aparentemente gestos simples e banais, estamos acionando mecanismos e categorias mentais que desde séculos atrás, comandam nossa relação com a escrita. Sabemos onde começa e termina um livro, podemos ver a quantidade de páginas, o tipo de papel, a capa, a lombada etc. Tudo isto implica em uma percepção total da obra que se lê, conferindo-lhe identidade e coerência. A professora Beatriz expressa isto, quando diz preferir trabalhar com o livro, pois o mesmo, tem início, meio e fim. “Eu acho que facilita, integra, dá uma sintonia, uma tranqüilidade maior. As pessoas sabem que é aquele livro”. Por outro lado, a leitura na tela do computador, implica novas categorias de apreensão do escrito, além de novos gestos e novas práticas, que só apareceram a partir dos anos 80 (Vinão Frago, 2001), com a chegada dos computadores pessoais.
        De acordo com as falas, parece que o gosto pelo livro também envolve uma questão relacionada à estética do objeto. Se pensarmos na materialidade destes dois suportes, podemos perceber que são poucas as variações permitidas quando se trata do aparelho computador, uma vez que o formato da máquina é, geralmente, padronizado. Por sua vez, o suporte livro permite inúmeras variações e combinações de cores, formas, tamanhos etc. Isto, sem dúvida, é um atrativo que afeta os olhos e os sentidos do leitor, influenciando seu gosto e preferência.
        Além dos aspectos estéticos ligados à materialidade do objeto, a preferência pelo livro parece estar relacionada também ao processo de socialização primária destes indivíduos. Em vários depoimentos aparece a leitura e o amor pelos livros como gosto adquirido desde a infância, quase sempre sob a influência dos pais ou de outros membros da família como avós, tios, etc. A professora Miriam, por exemplo, relembrando sua época de infância e sua iniciação na atividade leitora diz:

Foi em casa, com mãe e pai. Eles sempre leram muito. Eu comecei a ler cedo. Quando criança lia muito. Era uma atividade assim, em geral, da família. À noite, a gente lia muito à noite. (...) Foi minha mãe quem me ensinou a ler (...) Eu usava muito a biblioteca do meu pai e da minha mãe. Meu pai é que comprava mais livros. Ele lia muito os clássicos, lia muito.

        A unidade deste universo de professores entrevistados se por um lado pode ser expressa a partir de um mesmo pertencimento ao mundo profissional universitário e, sobretudo, à mesma instituição que apresenta marcas fortes culturais, segundo eles próprios, por outro apresenta descontinuidades simbólicas expressivas. Elas se revelam não só pelas escolhas disciplinares realizadas pelos professores em suas trajetórias profissionais, quando optam a partir de seus interesses por campos disciplinares distintos, como por distintas maneiras de estabelecerem relações com, por exemplo, atos de leitura e escrita sejam feitos no contexto acadêmico ou em instâncias mais pessoais de seus estilos de vida.
        Como se vê, as novas e “antigas” tecnologias da escrita pressupõem diferenças de uso que, por sua vez, relacionam-se a valores e emoções dos usuários. Desta forma, podem ser detectadas “fronteiras simbólicas” (Velho, 1978) que até certo ponto, colocam o professor Rubens e algumas professoras em universos diferentes. Ou seja, isto aparece em um depoimento bem nítido deste professor quando ele declara ter “perdido a lógica” da escrita manuscrita, enquanto que, para Paula e Helena, a relação com a escrita à mão é vista como um valor, por ser altamente personalizada e expressiva de um “gosto”. Este “gosto” pela escrita, conforme revela Helena, vem associado a sua concepção enquanto “exercício” e arte, em se tratando, no seu caso, de uma “escrita filosófica” ou uma “pequena obra literária”. Seu depoimento é revelador ainda, do papel da universidade no sentido do desenvolvimento tanto do pensamento quanto da escrita, já que o ato de pensar e de escrever, são vistos como inseparáveis. Entretanto, é na relação com o computador que Helena se propõe a “burilar” o texto que deixa então de ser classificado como “copião” e passa a existir como “texto”.
        Isto nos faz pensar também, em um imaginário sobre a escrita à mão que está associado à própria idéia da individualidade, de maneira tão íntima, que pode até servir como prova de identidade, juridicamente falando. Por sua vez, a grafologia como estudo da escrita manual, é visto como reveladora da personalidade tendo em vista a análise de traços da escrita de cada um.
        Como em todos os períodos de mudanças na história da escrita, hábitos “antigos” tendem a perdurar juntamente com os novos que vão sendo adquiridos. Ao tentarmos entender os mecanismos e efeitos da nova escrita, não devemos ficar nem com as “lamentações nostálgicas” nem com os “entusiasmos ingênuos” como bem diz Chartier. Interessa entender estas transformações e como ela afeta o mundo da escrita e da leitura.

A aula, a pesquisa e a excelência acadêmica


Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível (Barthes, R., 1992).

        Para Helena a qualidade e a excelência acadêmica, no que diz respeito a uma boa aula e um bom professor passam por uma produção que faça sentido para a vida da pessoa e que seja algo “intimamente ligado com as questões essenciais do indivíduo”. Liga-se, também, a um profissional cujo fazer é fruto de uma “vocação”, ou seja, de um talento. Para ela não é o “título que faz a excelência acadêmica, é a dignidade, a ética, porque o professor está transmitindo um conhecimento”. Segundo Helena, ele é o elo entre o passado e o presente, sendo o docente aquele que “está fazendo a tradição”. Excelência acadêmica, afirma essa professora, é uma questão de exemplo humano que passa pela ética e pelo interesse que o professor tem pela matéria que assim desperta no aluno a motivação.
        Em outras palavras, o ofício de professor se distingue pela transmissão intelectual e de valores morais através das gerações, sendo ele mediador e portador de memória.
        Para ela, vocação está associada ao ensino como pendor e disposição, que integra o “intelecto” com o “coração”, que pode esvair-se em nome da “competição” e da pressão quantitativa na produção intelectual. Aula tem um aspecto teatral e artesanal que dispensa o uso de outras tecnologias além da palavra e do texto.
        Paula, quando começou a dar aula, “tinha uma preocupação quase exclusiva com o conteúdo...” “Era importante que os alunos recebessem o saber como valor”. Hoje, Paula usa a sua aula para ensinar além da matéria, “um conteúdo também de relações sociais”. Paula chama atenção para a propagação de um sistema de valores que incluindo o currículo, comporte outros princípios que estão associados a atitudes e comportamentos, segundo ela, próprios ao “espaço universitário” e à sociabilidade “coletiva”. Portanto, há distintas classes de valores e saberes a serem transferidos, ou seja, tanto os de cunho disciplinar, como aqueles que são básicos como o “respeito” na convivência cotidiana e outras atitudes adequadas a um universitário. “Educação é postura”, diz ela.
        As visões destas duas professoras se aproximam. “A aula é o meu coração, aquilo com que estou envolvida totalmente”. A aula exige preparo e Paula tem coleções de cadernos de aula escritos à mão, conforme diz ser a sua preferência quando se trata de trabalhar o material para as suas aulas. O computador é usado nas tarefas administrativas.
        Vê-se, assim, que existe uma visão do papel mediador do professor perpassado por um élan civilizatório, que incorpora a transmissão de um ethos universitário. Observa-se também que no espaço universitário convivem tanto as práticas de escrita manuscrita preferíveis quando se trata das coisas do “coração” e a prática digital vista por alguns como frias. Carmem refere-se ao gosto de preparar aulas e programas embora veja o curso como algo vivo e, portanto, demandando “flexibilidade”. Define-se como uma “pessoa antiga” que até pode irritar-se com “essas tecnologias novas” de aula. Diz-se de “outra época de aula”, talvez dando preferência à encenação de “um diálogo na sala de aula”. Ensino demanda “empenho, um impulso interno”, sendo diálogo, uma categoria que nos remete a uma visão socrática de aula. Ela vê o “professor universitário como um privilegiado que acaba aprendendo com os alunos” e, por sua vez, acredita ter aprendido a dar aula na prática. Sublinha que “sempre espera que o aluno dê a direção”. Com isto, Carmem quer dizer que existe um tema para a aula, mas que pelo seu envolvimento com o aluno, de certa maneira, ele conduzirá a sua atuação. Isto se justifica, na medida em que, para ela, o que é demandado pelo aluno é o que ele precisa para sua formação. Carmem admite que “numa turma sempre você têm dois ou três alunos que dão o curso junto com você”. Questão esta que remete para as interações (Simmel,G., 1978) preferenciais entre professores e alunos que a partir de suas motivações, agrupam-se em “unidades que satisfazem seus interesses” (ibid, p.166) dentro da unidade maior de sala da aula.
        O discurso de Carmem faz pensar ainda que existe uma pluralidade de estilos de aula, uma construção histórica e social que vai transformando as formas de ensino universitário, de um “antes: que era ‘cuspe e giz’ para hoje com o uso de recursos tecnológicos que na sua crítica correm o ‘sério risco’ de confundir informação com conhecimento”. Na verdade, estes diferentes estilos convivem no dia-a- dia da universidade.
        Beatriz faz leitura de poemas e contos em sala de aula, utiliza recortes de jornal e trabalha com vídeo. Estes são “recursos” que lhe agradam, pouco trabalhando com transparências. Diz que gosta da “turma com papel na mão”. Prefere dar aula expositiva, sempre com um texto indicado, que é lido, destrinchado e discutido. A professora provoca interações com o texto e o texto teórico original é ampliado a partir das trocas acadêmicas. Estas atividades de sala de aula tanto comportam práticas orais de leitura partilhada quanto convidam à leitura silenciosa acompanhada posteriormente de discussão. No seu estilo de aula, a adoção de um livro e a sua leitura capítulo por capítulo é o que mais aprecia. Como veremos mais adiante, Beatriz integra na sua atividade docente, práticas de leitura e produção do texto acadêmico, “por dentro da própria disciplina”. Ao organizar um curso, quando se trata da graduação, adota um livro para que possa ser feito um estudo capítulo por capítulo. De fato, tem um livro de sua autoria escrito com esta finalidade.
        Tal gosto leva-nos a pensar a referenciar-nos em Barthes (2002) que diz que texto significa tecido com sua “idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo” (p.74). Quanto à “teoria do texto”, Barthes a chama de hifologia, por referência a hyphos tecido e “teia de aranha” (p.75).
        A partir desta referencia, pode-se pensar o curso como uma intertextualidade, ou seja, um tecido ou teia que fala sobre o estilo do indivíduo, do indivíduo como valor, na sua identidade mais profunda, móvel, geradora de teias e tecidos – os cursos.
        Texto e ensino são temas recorrentes, assim como o professor como modelo. Cíntia declara o seguinte: “ensino pelo modo como eu sou”. É dessa maneira que as “questões, os problemas e os meios eventuais de resolvê-los” são colocados, pois, ela afirma, ainda, que “metodologia, teoria são meios de resolver as questões”. Então, continua Cíntia, é fundamental “um elenco de leituras”. Cíntia ainda revela: “toda aula que eu dou é em cima de um texto. Tem um texto e quem quiser ler o texto, vai colocar questões e vai ser muito mais interessante”.
        Volto à teoria de Barthes (ibid, 2002): o ensino é um “tecido e teia de aranha”. Nas palavras de Cíntia, “aí eu fico bordando extravasando”, sendo a metáfora dos bordados mais uma alusão a esta trama textual, que tanto está na base da concepção quanto da realização do curso. Em suma, nos termos da professora, “o texto é pretexto” é o fio do bordado.
        Estas práticas acadêmicas têm em grande parte das vezes, o uso do suporte de fotocópia. Sem exceções, os professores usam a fotocópia e muitos possuem as famosas “pastas” onde estão depositados todos os textos que serão usados no decorrer do curso (Pavão, A., 2004).
        Todos, também, criticam o uso da fotocópia que é, ao mesmo tempo, um constrangimento para a produção de sentido (Chartier, R., 1990), apesar de ser uma prática acadêmica indispensável para compor um programa. Isto se explica pelo preço dos livros, pelo difícil acesso à parte da literatura selecionada a ser estudada, assim como pelo leque de interesses que se constitui como referência para o professor.
        Mesmo sendo visto como indispensável, a fotocópia é um suporte de leitura usado a contragosto. Para Beatriz o texto fotocopiado é “fugaz, veio não sei de onde, ele não tem a cara do livro”. A materialidade do livro é integradora e estabelece uma sintonia entre leitores. Em contraste, o texto fotocopiado é sempre o “mesmo objeto”, “tudo igual”, “papel branco escrito uma coisinha do lado, título em cima...” “Não é azul, não é amarelo, não é vermelho...”
        Em resumo, a materialidade do suporte da fotocópia significa banalização, fragmentação e precariedade e, certamente, produz outras apropriações (Chartier, R., 1990) de autores, obras e teorias. Entretanto, como já foi dito é prática recorrente na universidade tendo se alastrado a partir dos anos de 1970 para os dias de hoje.
        Nota-se que, outras práticas de leitura e escrita entram em cena com o uso intensivo dos recursos digitais, mesmo quando não são usados de forma exclusiva.
        Vejamos: na área de Design, o uso de suportes variados é enfatizado. Rubens afirma que cada disciplina deve adotar um livro. Ele refere-se ao uso das “pastas” de textos, e insiste nos recursos audiovisuais, no uso da televisão e idealmente no datashow. Insiste, também, no ideal de que cada aluno tenha seu laptop, até porque muitos entre eles realizam seus trabalhos em “cds”. Defende um outro espaço de sala de aula “aberto” e “sem paredes” com todos os recursos digitais da contemporaneidade e com a prática de discussão em sala de aula a partir da leitura de sites. Seu conceito de leitura, consistentemente, é amplo, incluindo a “leitura de imagens, formas e objetos”, como já mencionamos.
        Outras práticas acadêmicas se descortinam com a introdução sistemática do uso dos equipamentos digitais, que supõem uma outra lógica e outras estratégias na transmissão da cultura acadêmica e da cultura letrada.
        Jorge comenta que freqüentemente manda textos de forma eletrônica, não só para os alunos como para colegas. Para ele, a idéia de que outros professores possam “acrescentar e fazer alteração no texto que passa a ter vida própria”, associa-se a sua visão de que: “se você quiser uma idéia sua medrando por aí, a primeira coisa que você tem que fazer é apagar a autoria”.
        Mirian, além de usar o livro texto nas suas aulas, usa a internet para se relacionar com os alunos, tanto divulgando avisos, como colocando listas de exercícios e seus gabaritos de avaliação.
        Uma outra faceta significativa do universo estudado, como já foi registrado, reside na sua definição não só como professores e orientadores como, também, como pesquisadores. Neste sentido, existe um pacto entre esta categoria docente e a instituição, que reconhece que o professor, para ser pesquisador deve ter um limite de horas na sala de aula. Hoje em dia, espera-se que esta categoria de professor ministre dois cursos por semestre, um na pós-graduação e outro na graduação. Esta é mais uma mudança, pois até recentemente, a partir de um certo número de orientandos, o professor/pesquisador podia ministrar apenas um curso por semestre. Uma recorrência é a concepção que a pesquisa é um valor.
        A prática de pesquisa associada ao ensino é uma das questões centrais na vida desta universidade. Para Jorge, trata-se de um “paradoxo sublime, uma universidade particular fazer pesquisa, dentro do modelo brasileiro”. Lembra que tem um contrato de 44 horas, mas ministra apenas 8 horas de aula. O que está por detrás de tudo isto? Referindo-se ao universo de professores Jorge diz: “Nós somos ‘cavalos de raça’, extremamente caros”. Isto porque, segundo este professor, oito horas de convívio com o aluno em sala de aula não paga o seu custo. Contudo, a universidade assim procede, uma vez, que do contrário não haveria tempo para ser dedicado à pesquisa.
        Trazendo outra vez as palavras de Miriam, vemos que para ela “a pesquisa enriquece muito a tarefa didática”, mesmo que as duas atividades não estejam diretamente correlacionadas. A professora acredita ser essencial gerar conhecimento, função, por assim dizer, própria à atividade de pesquisa.
        Rubens, por outro lado, se pergunta: “Quais as nossas ações em busca da excelência?” Dentro do contexto da sua área, a busca é por professores qualificados, uma parte deles composta de profissionais do mercado de trabalho não-universitário e a outra de pesquisadores. Ambos ministrando cursos. O que não interessa, entretanto, é o “professor profissional”, aquele que dá aulas em várias faculdades. Isto se justifica, uma vez que na visão deste professor dar aula é muito output, então deve haver muitos momentos de incorporação de informações novas e de estudo. Em outro dado relevante é a atualização curricular.
        Para Rubens, a sua área vem crescendo academicamente nos últimos anos, o que atinge a demanda por leitura e escrita em um âmbito disciplinar em que a “pesquisa era muito prática” e que a formação se “desenvolve dentro de um fazer”. Contudo o esforço, atualmente, é no sentido de cada disciplina ter um livro, embora nem sempre isto seja cumprido. Por outro lado, o professor frisa que na experiência da área não pode dizer que o aluno piorou ou que escreve menos, pois no caso em apreço, a prática é no sentido contrário.
        Aliás, esta área se distingue de outras pelo uso de tecnologias de ponta e pela demanda de determinadas condições de trabalho feitas pelos alunos. Existem, pois várias salas de aula com ar condicionado, televisão, vídeo, data show e computador.
        Contrasta-se o desenho destas salas de aula que vão desde a alta tecnologia a existência de salas de aula em formas de tendas, onde existem outros ambientes de ensino. Enfim, de um lado as aulas se desenrolam com discussão em site, o que implica num outro suporte para a relação de ensino, distante da relação aluno com o texto na mão utilizada em outras disciplinas. De outro lado, são as aulas nas tendas, levando o estudante a uma diversidade de experiências metodológicas que transformam a relação professor – aluno. Ou seja, sem gerar dicotomias, uma vez que estas experiências se cruzam, isto significa que os estudantes têm a oportunidade de uma vivência universitária variada.
        Rubens afirma que é importante discutir a questão do espaço em educação. Contrasta a sala de aula com um tablado em que o professor fica no alto e os alunos em baixo para marcar uma hierarquia com o espaço alternativo de um ambiente de sala de aula em uma tenda. Enfim, outra didática, outro espaço de ensino, outra relação com o estudante, uma vez que tais experimentos didáticos revelam valores distintos daqueles que presidem a maior parte das salas de aula, ainda espelhos de uma visão mais conservadora da relação professor e aluno.
        O que emerge de tudo isto? Uma visão “alternativa” da vida universitária, na qual o estudante e o professor se colocam na posição de parceiros na prática de aprendizagem. Uma concepção em que a experimentação com o espaço e as novas tecnologias são símbolos e valores para a transformação das metodologias didáticas e, quem sabe, geradores de uma outra concepção e prática de ser estudante.
        Beatriz rejeitando o termo excelência reflete sobre qualidade acadêmica da seguinte maneira. Pressupõe “sintonia” com os problemas da sociedade, pressupõe “seriedade e ética ‘impecável’ algo nem sempre presente”. A universidade “é um lugar que forma gente”. “Pode não formar leitor, mas forma profissional”. “Compromisso, identificação dos problemas sociais são dimensões que aparecem como a ‘razão de ser’ do conhecimento”. Então, a qualidade acadêmica tem a ver com o clima de “trabalho e respeito”.
        No discurso dessa professora a “competição” e “a falta de debates sobre a questão da universidade” no seu próprio espaço, podem ser elementos comprometedores da qualidade acadêmica, na ausência de uma associação de docentes.
        Para Joana, “excelência tem a ver com dar uma outra qualidade à vida, tanto à vida social, quanto à vida do conhecimento...”. Para Miriam “é o convívio da pesquisa com o ensino”.
        Um contraponto, talvez, apareça na visão de Carmem que por vezes sente a “dimensão acadêmica colocada em segundo plano” neste momento de crise do capitalismo. Uma de suas facetas pode ser observada nas estratégias de publicações pelos docentes e na atual obrigatoriedade de publicações de dois artigos por ano. Uma vez que podem ser elaborados em duplas, há possibilidade de desmembrá-los e estabelecer outras combinatórias no sentido de cumprir a cobrança da “elaboração” dos artigos.
        Em compensação Beatriz às vezes escreve além do número de artigos exigidos, mas não registra no currículo Lattes para preservar sua autonomia. Mas ressalta que esta regra acadêmica tem um lado pernicioso, pois incentiva a competição, em função da obtenção de verbas das agências de fomento.
        Ou seja, pode-se dizer que as concepções aqui abordadas sobre ensino na sua relação com a pesquisa e sobre o lugar da aula na vida dos professores, fazem parte de um sistema de crenças da vida universitária e que, como tal são orientadoras dos sistemas de práticas e rituais acadêmicos. Então, preparar a aula, usar um texto como “pretexto” e interpretá-lo, empenhar-se, ter o texto na mão, encenar um diálogo, usar recursos tecnológicos contemporâneos, montar “pastas” para fotocópias e articular pesquisa com ensino são facetas ritualísticas que se repetem e dão identidade à vida acadêmica. Em outras palavras, dão sentido e são plenas de significado na lógica do “modelo de universidade” experimentada por esses professores. Por outro lado, pode-se interpretar tais concepções como aspectos geradores da chamada “excelência acadêmica”, uma vez que estes rituais e práticas em que pesem as diferenças e contradições, constituem a dinâmica dos “modelos nativos” dessa mesma instituição.
        Já que os rituais produzem a própria qualidade da vida social (Peirano, M., 2003), tudo indica que esses rituais da vida cotidiana dos professores, uma vez postos em relações, reforçam e enfatizam concepções da vida universitária. Sem dúvida, como diz Cardoso de Oliveira o “homem não pensa sozinho, mas o faz socialmente”; o que em outras palavras significa que os dados, “construções” que construímos ao selecionar estes depoimentos, por sua vez construções sociais, são as interpretações de primeiro grau (Geertz, C., 1978) que tecem a própria “teia de significados” (ibid) desta cultura acadêmica. Trata-se de uma linguagem institucional cujas categorias são familiares aos integrantes desta “comunidade” profissional.
        Apesar da força que a relação ensino – pesquisa tem neste universo, traremos a perspectiva de outro intelectual sobre o assunto.
        Para Renato Mezan, titular da PUC – SP, (2005) o “binômio ensino e pesquisa” deve ser dissipado, uma vez que “muitos professores titulados ou não, não possuem vocação para produzir conhecimento novo, que é o que significa no sentido acadêmico a palavra “pesquisa”. Acredita ser tão importante quanto a atividade de pesquisa, sobretudo no que tange os cursos de graduação, a transmissão do conhecimento já existente. Por outro lado, acredita que “preparar boas aulas não é o mesmo que pesquisar”. Para planejá-las é preciso ler, estudar e informar-se o que não significa produzir conhecimento novo, o que deve evidentemente ser valorizado, até porque nem sempre os papéis de pesquisador e bom professor coincidem na mesma pessoa”.
        Essas considerações nos levam a pensar que as relações entre ensino e pesquisa podem ser polêmicas no que tange as atividades na graduação e que, por outro lado, excelência acadêmica é algo que se constrói no cotidiano dos professores indo além do estritamente disciplinar, pois envolve, também, princípios éticos.

Os estudantes – cultura letrada e diversidade social

        Uma das questões que nos propusemos a investigar liga-se a chamada diversidade sócio-cultural dos estudantes na universidade investigada (Dauster, T., 2004; Pavão, A., 2004; Candau, V., 2003) associada às relações entre os estudantes e leitura e a escrita, assim, como as iniciativas de formação do leitor.
        Esta problemática cruzou-se com uma visão geral do perfil dos alunos de ontem e de hoje, atravessada por considerações a respeito do efeito da mídia sobre suas atitudes em relação ao saber acadêmico. Lembramos que os entrevistados exercem sua profissão no contexto investigado no mínimo há uma década, sendo que alguns entre eles aí fizeram suas graduações, tendo assim uma perspectiva histórica para fazer esta apreciação.
        Uma vez que professor e aluno são categorias relacionais, assim como “aluno de ontem” e “aluno de hoje” estas considerações se inscrevem em uma “teia de significados” correlatos dependentes do lugar de quem fala. Por detrás da categoria aluno, espelha-se uma visão do que é o jovem, outro termo marcado pelos contornos da relativização.
        Examinando os depoimentos dos professores, percebemos diferenças significativas na maneira pela qual o alunado é visto.
        Para Rubens, um dos professores que se formou nesta universidade e que desde 1983 aí leciona, os avanços na tecnologia trouxeram uma revolução na área de imagem, que faz com que as salas de seu departamento tenham televisão e que todas as aulas sejam dadas com recursos audiovisuais.
        Indagado se sentia mudança no perfil do aluno, Rubens coloca-se contra um “discurso clássico” que diz que “o aluno lê menos”. Para ele, o aluno entra “maduro, chega com gás e informação”. É um outro aluno com o qual temos que aprender a conviver. Para ele, na sua área, “a comunicação se dá de várias formas, por imagem, debate, discussão”. Falando de leitura sustenta que este foi um ponto fraco no seu curso, até porque os livros nesta especialidade não existiam. No país, segundo o mesmo professor, não havia mais de cem títulos sobre o assunto.
        Em termos da chamada “diversidade cultural” entre os alunos, o professor constata que no seu departamento não existe “aluno bolsista social”. Isto não se dá “por preconceito”. A explicação deste fato reside em questões econômicas, pois “uma pessoa que nasce em uma comunidade carente, não fica sabendo o que é design”. Para corroborar a sua perspectiva diz que é, ainda, baixo o número de computadores adquiridos nestes segmentos, o que faz com que essa profissão seja pouco atraente. Admite ser o desing uma carreira que pode ser classificada como de “elite” por todos esses constrangimentos sociais e econômicos.
        Na realidade, no departamento citado, “pessoas não brancas não chegam a um por cento” apesar de que haja esforços no sentido de mudar esta situação a partir de trabalhos que são feitos com as chamadas “comunidades carentes”, segundo o professor. Cíntia afirma que no seu departamento os alunos negros são uma “minoria”, mesmo admitindo que “atualmente” o negro se tornou visível no Brasil. Contudo, “até terem os negros à mesma igualdade de oportunidades” há um longo caminho a ser percorrido, uma vez que “o Brasil é um país violento, construído na escravidão”. Lembra, também, que mesmo “os alunos têm dificuldade de aceitar o diferente”.
        Mas, voltemos ao professor Rubens. Ao falar dos alunos de sua área, ressalta que “mudaram... que têm outro tipo de conhecimento, uma outra maneira de pensar”. Na sua experiência de professor, há alunos que pelo acesso a Internet ou ao “Discovery” demonstram “saber” certos assuntos. Para esse professor, “a gente não sabe ainda lidar com essa forma de aprendizado, que os alunos trazem do segundo grau, alunos aí no caso, que têm recursos”.
        A imagem que é apresentada deste alunado é de uma formação “grande e pulverizada”.

Isso é uma coisa confusa para a gente lidar. Eles não têm mais um nível de conhecimento alto ou baixo, eles têm fragmentos, às vezes muito profundos, algumas coisas eles sabem horrores, e por outro lado, não sabem nada. Então é um conhecimento diferente, e a gente não sabe lidar com isso ainda.

        Em relação à escrita, as diferenças são significativas; há problemas de ortografia, de gírias, de alinhamento, mas há também textos considerados bons. Por outro lado, o computador “ajuda” até certo ponto a correção de textos.
        Carmem apresenta uma dupla classificação: professora de antes e de agora para falar do aparato tecnológico que liga os mundos dos professores e dos estudantes. Para ela, estes equipamentos não passam de recursos como o giz. Afirma também que já assistiu “aulas com transparências que eram infernos de mal dadas”. Tais considerações são feitas para falar do alunado de hoje.
        A propósito das diferenças e semelhanças entre os “alunos de antes e de agora”, comenta, mostrando que as relações sociais na sala de aula são marcadas por relações de distância e proximidade (Simmel, G., 1978).

Eu acho que a gente continua encontrando em alguns alunos, evidentemente que não são todos, nunca foram todos, o sujeito interessado, que você diz alguma coisa e o olho dele brilha. E você vê gente que é indiferente, não sei porque. Ou não gosta da tua disciplina, ou não gosta da sua maneira de dar aula, ou não tem empatia nenhuma por você, isso é natural nas relações, nos encontros sociais...”

        Para Carmem, “houve uma certa mudança na sensibilidade” dos alunos. É possível que a sua causa resida em uma “exposição muito grande à televisão, aos meios eletrônicos e ao computador” gerando uma “certa frieza”. Suas explicações situam-se entre dois pólos, um de caráter mais individual – o aluno ser ou não uma pessoa interessada e o outro centrado na sociedade, nos processos coletivos, ou seja, na “socialização com tanta aparelhagem”. “... tem sempre uma mediação - um gravador, um computador, um aparelho”.
        Carmem fala do risco de confundir “informação” com “conhecimento”. “Os aparelhinhos são ótimos para a rapidez da informação, volume da informação, mas acho que todo mundo precisa de um tempo para receber uma coisa, para acomodá-la junto com outros saberes, um tempo para metabolizar, incorporar ou não”.
        A professora trata de um tema relevante a ser tratado por qualquer teoria de apropriação (Chartier, ibid) de bens culturais imateriais e da produção de conhecimento. Certamente, qualquer teorização neste sentido, deve levar em conta o contexto de sociedade na qual se insira a problemática a ser estudada.
        Sennet, R. (2005) pergunta: “como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo?” (p.27). Como vimos para esse autor “é a dimensão do tempo no novo capitalismo, e não a transmissão de dados high-tech, os mercados de ação global ou o livre comércio, que mais diretamente afeta a vida emocional das pessoas fora do local de trabalho. “Não há longo prazo significa mudar, não se comprometer e não se sacrificar” (ibid, p.25).
        Uma vez mais, tais questões transpostas para a situação universitária, poderiam indicar-nos que não são os aparelhos high-tech classificados pela professora Carmem como “frios, os dispositivos que estão nas raízes da tensão informação – conhecimento na vida universitária, mas, sim, os usos do tempo e a própria construção social da categoria tempo na nossa sociedade. Daí, as palavras de Carmem no sentido de que bons alunos e alunos medíocres sempre houve, contudo a nossa cultura imediatista não está favorecendo os bons alunos, como não favorece segundo ela “o prazer da leitura, que tem um tempo e precisa de disponibilidade”.
        Um outro contraste surge entre a geração dos estudantes de 1976 e de hoje. Naquela época, havia a preocupação com os movimentos sociais e a política que durou até 1988 aproximadamente. Hoje, a professora estranha os alunos jogando baralho nos intervalos das aulas.
        Os alunos são vistos por distintos ângulos e distintas maneiras, mesmo sendo consideradas algumas recorrências. Por exemplo, Miriam nos fala de um aluno mais pragmático, objetivo e que não se interessa em aprofundar o conhecimento, sendo uma minoria aquele que deseja mergulhar no conhecimento. Explica esta diferença por um “empobrecimento do pensamento”, pois “o pensar hoje em dia é muito difícil, pois as pessoas não querem pensar”. Para Helena a “internet e os meios de comunicação de massa” aparecem como um fator interveniente na quantidade de informação que os alunos possuem e na dificuldade que têm de processá-la. Assim, esta professora apresenta-nos o seguinte paradoxo: “alunos que chegam esvaziados, com a espiritualidade meio diluída”, e que ao mesmo tempo armazenam muita informação no contato diário com a mídia.
        A aposta que a professora de filosofia faz no ensino de sua matéria vincula-se à “brecha” e ao “vácuo” que surge da “opressão” que o sistema social imprime no mundo de hoje, que “se por um lado afasta o homem do pensamento”, por outro, “as pessoas estão sendo forçadas a pensar porque sofrem”.
        Uma vez apresentadas estas colocações de ordem mais geral, voltemos para as relações com a escrita e a leitura entre os alunos. Para Helena “os alunos escrevem pior... são aprovados alunos que não têm a menor condição de fazer cursos... alunos que não sabem colocar letra maiúscula em nome próprio”.
        Ao ser questionada sobre a possibilidade da universidade formar leitores, técnicos, literários, assim declara Helena: “... não é só ‘saber ler’ que faz você ‘saber ler’. Saber ler é saber pensar”.
        Para a professora, são poucos os que conseguem ser despertados para tal, mesmo admitindo que este é o objetivo da universidade.
        Joana, a respeito do mesmo tema, concorda em uma mudança de perfil do alunado, que hoje não é proveniente apenas das chamadas escolas de excelência. Acredita que a universidade tenha que se instrumentalizar para superar os limites apresentados atualmente. Ela percebe que os conceitos não estão formulados e as palavras são tomadas pelos alunos dentro do senso comum em inúmeras instâncias. Neste contexto a professora tem como propósito “ensinar a ler”.
        É assim que Joana refere-se a sua “estratégia do diário de leitura”. Em que consiste? “Os alunos têm um caderno onde vão escrevendo todas as leituras que vão fazendo e comentando... então, eu pego os diários e comento”.         A professora exemplifica a sua estratégia nos seguintes termos:

Os alunos anotam a aula, os comentários, eu vou comentando e lendo cada um deles e vou demandando que eles façam um segundo texto muito melhor que o primeiro porque ele já deve incluir os comentários do primeiro e assim por diante... para que ele faça essa associação, que compreenda que estudar é conectar-se com certas informações, certos conhecimentos e tirar aquilo para a sua própria vida.

        Quanto à possibilidade da universidade formar leitores, Joana se interroga. Mesmo admitindo que os estudantes leiam muito, até porque são obrigados a isto, “quer literatura técnica, quer literatura ficcional, quer livros teóricos, formar leitores é uma coisa diferente”. A professora não sabe se a universidade forma leitores permanentes. “Eu desconfio que não forma”, ela declara. A sua dúvida é no sentido de não saber se serão lidos apenas livros técnicos. Se o aluno “não descobrir o gosto da leitura ficcional, da leitura de arte, o gosto pela pintura, que também é linguagem artística e também precisa ser lida”, a formação não se dará na sua plenitude.
        Beatriz tal como outros professores menciona os efeitos da mídia sobre os estudantes na “conjuntura contemporânea”. Nas suas palavras “uma cultura contemporânea de muita confusão”. Ela percebe os alunos “confusos”, uma certa “dispersão”, um “convite às distrações”, e a vida de todo mundo atravessada pela mídia a partir dos últimos vinte e cinco anos, portanto a partir de 1980 aproximadamente. A professora, também, acha que existe, nos dias de hoje, uma certa “quebra disso que era o que é ser professor, o que é ser aluno”. Com isso Beatriz chama atenção para a construção histórica e social dos papéis de professores e alunos. Esta construção, “parte principalmente dessa cultura do que é jovem, do que é novo, de um não querer envelhecer, de um achar que é um barato ser irresponsável”.
        Joana, Helena e Beatriz deploram o baixo nível de exigência e permanência no curso e no vestibular, referindo-se aos lamentos de alunos de graduação que “ficam em prova final”. Para eles faz parte da identidade do universitário, tanto ser submetido às provas, quanto ter notas.

Acho que isso faz parte do ser universitário. Tem prova, tem nota... Agora, eu acho que todas as universidades hoje, nessa inclusive, precisariam ter mecanismos de garantir essa permanência com formas alternativas mesmo de inserção nesta norma culta. Eu acho que isso é perfeitamente possível. Eu não concordo, eu sei que tem toda uma visão – existe nessa universidade também – que ele entra, não sabe algumas coisas e não é na universidade que vai aprender. Eu discordo, eu acho que aprende em que qualquer momento. Eu tento fazer isso com os meus alunos. Lá no sétimo período, lá na ponta... Mas só para você ter uma idéia, tem uma horinha, toda aula, da metade do curso em diante – porque antes os alunos se ofendem um pouco – tudo o que você queria saber e tinha vergonha de perguntar, do tipo: porque que coloca crase, onde põe vírgula, começa a frase com gerúndio, porque ‘afim’ é junto ou separado? As alunas já me perguntaram: ‘quando é que usa a partir junto?’ Nunca, não existe. Então eu acho que a gente tem preconceito com a língua. Eu acho que é perfeitamente possível fazer isso, eu já conversei com vários professores... Agora, dá muito trabalho. É um trabalho enlouquecido. Eu só consigo fazer isso porque eu tenho hoje, outros bolsistas do estágio da docência. Então eu tive o privilégio de ter – as duas que eu tive agora eram formandas em Letras, porque eu fico buscando as que são formadas em Letras, não para orientar, mas para ser meu bolsista – pois o pessoal de Letras que faz o Mestrado ou o Doutorado com a gente. E quando eu não tenho, eu recorro aos monitores da especialização.

        Beatriz faz questão de derrubar o mito de que são os alunos provenientes dos setores de baixa renda aqueles que têm dificuldade com a língua portuguesa. Como se esta fosse uma problemática exclusiva de um setor social.
        A professora afirma que tem excelentes “alunos de classe popular, negros, dos vestibulares comunitários”, que escrevem muito bem. Por assim ter declarado, foi acusada de escamotear a situação.
        Contudo, insiste que problemas aparecem nas classes “populares, médias e altas”. Reforçando sua argumentação, declara que há “pessoas de classe alta que não sabem ler e escrever e compram trabalho ou têm seus trabalhos feitos por alguém”.
        Na verdade, esta professora insiste que sejam criadas na graduação estratégias “por dentro dos cursos”, no processo de trabalho com os textos produzidos pelos alunos que devem ser recorrentemente avaliados e elaborados mais uma vez buscando maior competência na comunicação escrita.
        A problemática referente aos usos da leitura e escrita nos padrões da norma culta é tema importante entre os integrantes da universidade, nos seus diferentes níveis. Existe a intenção política de implementar estratégias curriculares criando disciplinas que tenham como foco as práticas de leitura e escrita, desde o ingresso na universidade, para todos que assim o queiram, como advogam Beatriz e Joana.
        Candau (2003, p. 138) nos fala que os professores que entrevistou destacam que “independentemente de suas origens econômicas, sociais e culturais, cada vez mais, aumenta na universidade o número de jovens que apresentam defasagens/deficiências em relação ao que eles/as denominaram habilidades acadêmicas (capacidade de leitura crítica, de argumentação, de produção de textos, de domínio de outros idiomas, entre outras habilidades, necessárias para atender a um perfil pré-definido e ideal). A mesma pesquisadora nos diz (ibid, p.136) que a “a existência de um novo perfil do/a aluno/a da universidade é ressaltada por todos/as professores/as. E, embora os/as professores/as afirmem que lidar com a pluralidade do corpo discente seja rico, interessante e desafiador, vários/as professores/as apontam como uma dificuldade significativa ter de trabalhar com grupos de alunos/as tão diversificados/as. Para eles/as é difícil lidar com a diversidade tanto cultural como econômica e social. Chegam a relatar que, muitas vezes, precisam superar preconceitos e lidar com novas tarefas difíceis de enfrentar, além de ser necessário vencer a falta de tempo ou a pouca disponibilidade para buscar e/ou utilizar novas estratégias pedagógicas que dêem conta dessa diversidade”.
        Fazendo um balanço do que foi discutido até aqui sentimos que as reflexões sobre a questão da diversidade cultural na universidade mantiveram-se distantes de maiores conflitos, embora tocassem em pontos significativos. Contudo, possibilitou-nos ver com nitidez que se de um lado existe um processo de “deselitização” (Dauster, 2003) da universidade, com a entrada de setores populares em alguns de seus cursos, por outro lado não podemos dizer o mesmo sobre grande parte dos departamentos e carreiras, ainda significativamente elitizadas. Ou seja, este processo em curso, embora expressivo é ainda pleno de contradições e constrangimentos.
        Desfizemos em contato com os professores o estereótipo que apenas os alunos de setores populares têm dificuldades com a norma culta e com a leitura. Estas dificuldades perpassam as classes sociais, embora possam ter as suas especificidades, algo que não foi possível averiguar. Vimos também que embora a difusão da leitura e escrita seja diferencial entre os alunos, há intenções e esforços são feitos no sentido de minimizar os problemas. Isto se dá tanto por iniciativa individual, como através propostas curriculares.
        Tocamos inclusive em uma discussão que merece posterior aprofundamento; a relação entre a construção social do tempo e a construção do conhecimento no espaço universitário nos dias que correm.

Considerações Finais

        Em que pesem as contradições que certamente aparecem no cotidiano da vida universitária, retornamos à Geertz para lidar com o significado, (ibid, p.103) tomando as categorias apresentadas no discurso dos professores, como símbolos que sintetizam um padrão cultural e uma visão de mundo. Assim, encontram-se recorrentemente nas suas falas as questões da ética e da função social do conhecimento, símbolos, sim, de um “conjunto distinto de disposições (tendências, capacidades, proposições, habilidades, hábitos, compromissos, inclinações)”. Como ainda diz o mesmo autor, uma disposição descreve “uma probabilidade de atividades a serem exercidas ou de a ocorrência se realizar em certas circunstâncias” (ibid, p. 109 e 110). Estas palavras convidam a pensar: os professores estão falando de um certo lugar – a universidade – mas de distintas tradições acadêmicas. Mesmo considerando-se as suas especificidades, as recorrências de valores tais como – comportamento ético e função social do conhecimento dão o tom e o caráter da vida acadêmica nesta universidade. Outrossim, fazem parte de seus sistemas de crenças e, até certo ponto, são orientadores de suas ações, em que pesem as tensões entre o que se pensa e o que se faz.
        Sobre livros e leitura, trazemos outra vez Mary Douglas. Como diz a pesquisadora “o homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e para entender o que se passa a sua volta” (ibid, p.149).
        Através do nosso diálogo com Vera Candau, percebemos que é possível, tendo em vista as nossas pesquisas qualitativas sobre o mesmo universo social, ensaiar algumas generalizações sobre a visão dos professores quer sobre seu lugar de trabalho quer sobre os estudantes e a diversidade social.
        Cabe sublinhar, ainda, que entre textos e pretextos, diversas práticas de leitura e escrita vão sendo transmitidas de forma mais e menos intencional nas sociabilidades acadêmicas. Instituem-se dessa forma relações de socialização das distintas gerações na cultura letrada.
        Em uma perspectiva histórica de longa duração, a relação de ensino é apresentada a partir do modelo socrático do diálogo. A maieutica, parturição de idéias para Platão (Teeteto), está subentendida na relação dialógica da teoria do conhecimento de sua filosofia. A dialógica está viva entre nós ao lado do modelo tecnológico-digital de construção do conhecimento que irrompe na cena universitária diferencialmente (Chartier, R., 1990) provocando outras escritas e leituras e outros lugares de autor e leitor.
        Constatamos a partir do ponto de vista dos professores a convivência de distintos estilos acadêmicos, as mudanças quanto às práticas de leitura e escrita, tendo em vista os usos do computador, os múltiplos papéis exercidos pelos professores, suas crenças e valores no que tangem a universidade e suas visões a respeito da diversidade dos estudantes.
        Finalmente, acreditamos que no decorrer de nosso trabalho mostramos a coexistência de distintas práticas e estilos acadêmicos, assim como diferentes visões do papel da universidade interagindo (Velho, 1994). Mostramos intensas mudanças culturais em curso. Portanto nos aproximamos da própria energia e dos movimentos de uma sociedade complexa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARTHES, R. “A aula”. São Paulo: Cultrix, 1992.

___________. “O Prazer do Texto”. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.

BOURDIEU, P. “La distinction”. Paris: Minuit, 1979.

____________. “Gosto de classe e estilos de vida”. In: Pierre Bourdieu: sociologia. (org. Renato Ortiz) São Paulo: Ática, 1983.

CANDAU, V. “Universidade, diversidade cultural e formação de professores”. Rio de Janeiro: GECEC, CDROM 2003.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. “O Trabalho do Antropólogo”. São Paulo: UNESP Editora, 1998.

CHARTIER, Roger. “A Ordem dos Livros”. Brasília: Editora UNB, 1994.

______________. “A História Cultural – entre práticas e representações”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

______________. “A Aventura do Livro: do leitor ao navegador”. São Paulo: UNESP, 1998.

______________. “Os Desafios da Escrita”, São Paulo: UNESP, 2002.

______________. “Formas e Sentido – Cultura Escrita: entre distinção e apropriação”. Campinas - São Paulo, Mercado de Letras, 2003.

CANCLINI, Nestor G. “Consumidores e Cidadãos - conflitos multiculturais da globalização”. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.

DA MATTA, R. “A Casa e a Rua”. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.

DAUSTER, T. “A Invenção do Leitor Acadêmico”. Campinas: Leitura: teoria e prática, nº 41, 2003.

___________. “O campo simbólico da universidade – Os professores, a diversidade cultural e a excelência acadêmica”. Projeto de pesquisa – PUC-RIO / CNPq / FAPERJ – 2002 – 2005.

____________. “Uma Revolução Silenciosa”. In: 6 AVÁ – Revista de Antropologia, Programa de Posgrado en Antropologia Social, Secretaria de Investigación y Posgrado de la Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales de la Universidad Nacional de Misiones, Argentina 2004.

____________. “Os Universitários: modos de vida, práticas leitoras e memória”. In: Teias, Conhecimento, Sociedade, Educação, ano 2, nº 4, Julho / Dez 2001. Faculdade de Educação / UERJ.

DOUGLAS, M. e ISHERWOOD, B. “O Mundo dos Bens – para uma antropologia de consumo”. Rio de Janeiro: UFRJ editora, 2004.

ELIAS, Norbert. “Sobre o Tempo”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.

GEERTZ, C. “A Interpretação das Culturas”. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

LÉVI-STRAUSS, C., “Tristes Trópicos”. São Paulo: Anhembi, 1957.

MEZAN, R. Jornal Folha de São Paulo, caderno Mais, pg. 3, 20 de março, 2005.

NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria. “Na Malha da Rede: os impactos íntimos da Internet”. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

PAVÃO, A. “O papel da leitura e da escrita nos movimentos de inclusão e exclusão das camadas populares na universidade”. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação. PUC-RIO 2004.

PEIRANO, M. “Rituais Ontem e Hoje”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

QUEIROZ, M. I. P. “Relatos orais: do ‘indizível’ ao ‘dizível’”. In: VON SIMSON, O. M. (org. e intr.). Experimentos com histórias de vida (Itália-Brasil). São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, Enciclopédia Aberta de Ciências Sociais, v.5, 1988.

SENNETT, R. “A Corrosão do Caráter – conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo”. Rio de Janeiro: Record, 2004.

SIMMEL, G. “Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

VIÑAO FRAGO, A. “Por uma História de Cultura Escrita: Observações e Reflexões”. Santarém: Cadernos de Projecto Museológico, nº 77, 2001.

______________. “Leer y Escribir: historia de dos prácticas culturales”. México: Educacion, Voces e Vuelos, IAP, 1999.

_______________. “Del Periódico a Internet”. Leer e Escribir en Los Siglos XIX y XX. In CASTILLO GOMEZ. Antonio (coord.). Historia de La Cultura Escrita: de próximo Oriente Antiguo a la sociedad informatizada. Gijón, 2001.

VELHO, G. “Observando o familiar” in: A Aventura Sociológica – objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social (Edson de Oliveira Nunes - org.) Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978.

____________. “O Desafio da Cidade: novas perspectivas da antropologia brasileira” Rio de Janeiro:Editora Campus, 1980

____________. “Unidade e Fragmentação em Sociedades Complexas” in: Projeto e Metamorfose – antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

_____________. “Pesquisas Urbanas: Desafio do Trabalho Antropológico”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

______________. “Mediação, Cultura e Política”. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.



NOTAS
1 Tania Dauster é professora do Departamento de Educação da PUC – Rio, Pesquisadora do CNPq e coordenadora do Projeto de Pesquisa: “O Campo Simbólico da Universidade – os professores, a diversidade cultural e a excelência acadêmica“ – PUC-Rio, CNPq, 2002 a 2005; Dione Amaral é doutoranda do programa de Pós-Graduação do Departamento de Educação da PUC-Rio; Mônica Guimarães é bolsista de apoio técnico da FAPERJ; Sandra Mendes é bolsista de iniciação científica do CNPq – PIBIC.