Crianças, Televisão e Valores: resultados preliminares de pesquisa

Rosália Duarte1

Resumo

Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa, ainda em andamento, que tem por objetivo descrever e analisar as relações que as crianças estabelecem com o que vêm na televisão e o modo como elas lidam com os conteúdos dos produtos televisivos aos quais têm acesso. Levamos ao ar, em setembro de 2004, um spot  televisivo que convidava crianças, com idades entre 8 e 12 anos, a nos enviar cartas, desenhos ou mensagens eletrônicas com suas reflexões a respeito do que viam na tevê, do que gostam e do que não gostam de ver e por quê. Os procedimentos adotados na realização da pesquisa e uma análise preliminar do material que as crianças nos enviaram constituem o eixo central deste artigo.

Palavras-chave: televisão, crianças, valores, significação

Abstract

This text presents partial results of a research, unconcluded yet, that intend to describe and to understand what the children think about what they see on television. Through a television spot, we invited 8 to 12 years old children to send us texts and drawings about what they usually see on television, what they like or not on it and why. The procedures of this research and a primary analysis of the material that the children sent us are the major contents of this paper.

Key-words: television, children, values, signification

        A sociedade brasileira é uma das mais audiovisuais do planeta: cerca de 98% dos lares brasileiros dispõem de pelo menos um aparelho televisão2 ; a programação do canal de maior audiência no país abrange quase 100% do território nacional; em horários de maior audiência, cerca de 150 milhões de pessoas estão diante da tela de seus televisores; os espectadores brasileiros assistem em média a 3 ou 4 horas de tevê por dia. Nossa freqüência a salas de cinema é pequena para o tamanho da população (apenas 8% das cidades brasileiras dispõem de salas de cinema), mas vem crescendo significativamente nos últimos anos, sobretudo em razão da abertura de salas Multiplex, e configura hoje uma média de 140 milhões de ingressos vendidos ao ano. Canais abertos de televisão exibem pelo menos trinta filmes por semana, enquanto os canais por assinatura exibem, mensalmente, algumas centenas deles. Além disso, estima-se que haja hoje mais de vinte mil videolocadoras espalhadas por grandes e pequenas cidades de todo o país, localizadas tanto em bairros nobres quanto em comunidades de baixa renda.
        No Brasil, jovens universitários compõem o maior segmento do público que freqüenta salas de cinema; jovens, de diferentes camadas sociais, são maioria na locação de filmes enquanto as crianças compõem o segmento mais significativo de espectadores de televisão (estimativas realizadas pelo IBOPE sugerem que espectadores de 8 a 14 anos representam o maior percentual do público das telenovelas, incluindo as exibidas em horário nobre, em geral classificadas como inadequadas para essa faixa de idade). Canais especialmente voltados para crianças (Cartoon Network, Fox Kids, Discovery Kids, Disney Chanel, Nickelodeon, entre outros) são veiculados pela tevê por assinatura, com uma programação destinada a atender o “gosto” infantil vinte e quatro horas por dia. Segundo informações das redes de TV por assinatura, o Brasil tem hoje perto de cinco milhões de assinantes, mas sabe-se que há centenas de milhares de ligações clandestinas em comunidades de baixa renda das grandes cidades.
        São crianças e jovens que se relacionam de modo mais intenso e extenso com a produção audiovisual realizada para cinema e televisão em países onde o tempo de permanência na escola ainda é inferior ao desejável (4 horas diárias, em média) e onde atividades culturais e esportivas são, em geral, restritas a classes economicamente favorecidas. Milhões de crianças brasileiras ficam sozinhas em casa durante o dia aguardando que os pais retornem do trabalho, enquanto milhares de adolescentes navegam na Internet ou circulam em grupo pelas “lan houses” 3 e salas de cinema multiplex de shopping centers.
        Nesse contexto, estudos sobre o modo como produtos audiovisuais participam do cotidiano desses sujeitos, ajudando a construir valores, identidades e imaginários, em interação com outros processos de socialização são quase sempre insuficientes, pois a complexidade e a dinâmica da relação emissão/recepção exige a permanente atualização das pesquisas e de referenciais teórico/metodológicos.
        A América Latina está bastante avançada na elaboração de teorias e métodos de pesquisa voltados para o estudo da recepção de produtos audiovisuais. Pesquisadores como José Martin-Barbero (Colômbia), Guillermo Orozco Gómez (México), Néstor Canclini (México), Beatriz Sarlo (Argentina), Valerio Fuenzalida (Chile), Tatiana Merlo Flores (Argentina), Mauro Wilton de Souza (Brasil), Nilda Jacks (Brasil), Maria Immacolata Lopes (Brasil), entre outros, vêm conquistando reconhecimento internacional com os trabalhos desenvolvidos em âmbito latino-americano. Nesse contexto, adquire projeção a Teoria das Multimediações (proposta por Martin-Barbero e desenvolvida metodologicamente por Orozco Gómez) que dá sustentação a grande parte das pesquisas realizadas nesses países sobre as relações entre mídia e cotidiano e mídia e educação. Esse campo de investigação tem correspondência conceitual com os trabalhos desenvolvidos na Inglaterra por Roger Silverstone e Sonia Livingstone, no Media@LSE, sediado na London School of Economics and Political Science, que congrega outros sete laboratórios de pesquisa na Europa.
        Estes teóricos aproximam os conceitos de comunicação e cultura e defendem a tese de que o sentido que se constrói entre o universo particular do sujeito e os produtos da mídia é informado diretamente pelo contexto cultural no qual ambos estão inseridos. A mídia é vista como processo institucionalizado onde diferentes atores se reúnem e se confrontam, buscando alcançar alguma síntese de significados — por mais provisória que esta possa ser. O receptor não é passivo, participa ativamente da produção de sentido, dentro de uma lógica cultural; e lida com as possibilidades que essa cultura lhe abre (ou limita) para construir significados.
        De acordo com Orozco Gómez (2001) quatro principais fontes de mediação atuam sobre o processo de recepção: mediação individual (questões relativas à história de vida do sujeito, a gênero, idade, etnia, desenvolvimento cognitivo e emocional e assim por diante); mediação situacional (diz respeito aos cenários em que se produzem as negociações e apropriações de significado, ou seja, as situações na quais se processam as relações entre a mídia e seu receptor); mediação institucional (diz respeito ao papel desempenhado na produção de sentido pelas instituições e organizações sociais das quais o indivíduo participa simultaneamente: Estado, família, escola, grupo de pares, Igreja etc.) e mediação tecnológica (trata-se dos mecanismos exclusivos da mídia em questão, isto é, linguagem e características técnicas que influenciam a recepção). Essas diferentes fontes de mediação precisam ser levadas em conta quando se analisa a produção de significado na recepção de produtos audiovisuais. Neste estudo, buscamos identificar nos desenhos das crianças que participaram da pesquisa pistas sobre as fontes de mediação situacional (neste caso, o ambiente e as condições de visualização da TV: se sozinho ou acompanhado — de adulto ou de outra criança; local onde vêem TV na casa — sala de estar, quarto ou outro ambiente; espaço ocupado pela TV no ambiente doméstico etc. ) e nos textos que elas nos enviaram buscamos pistas sobre o papel desempenhado pela escola e pela família na opinião sobre o que vêem na TV.
        Estes estudiosos compartilham entre si certos postulados que norteiam a compreensão desse problema:


La recepción es producción’; ‘La recepción es interación’; ‘Los receptores no dejan de ser sujetos sociales cuando están en interacción com los medios’; ‘La recepción no comienza ni termina en los momentos de contacto directo com los referentes mediáticos’; ‘Todo proceso de recepción está necesariamente mediado desde diversas fuentes (OROZCO GÓMEZ, 2002:18).

        Os estudos latino-americanos de mídia e recepção inspiram as pesquisas que o GRUPEM (Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia) vem realizando desde 2001: O papel do cinema na formação de estudantes universitários, 2001-2002; Filmes e construção de valores morais entre jovens, 2002-2004; e, neste momento, Crianças, televisão e valores morais (Projeto aprovado no Edital CH 06/2003, objeto do presente relatório). Temos como objetivo geral analisar, descrever e compreender: 1) como crianças e jovens dão sentido ao conteúdo de produtos audiovisuais; 2) como se estruturam os esquemas de significação de que fazem uso para se apropriar do conteúdo desses produtos; 3) como percebem valores apresentados naqueles produtos e como os articulam aos seus pressupostos; 4) como a produção audiovisual participa da construção de suas identidades (culturais, sociais, sexuais, de gênero). Trata-se de um programa de investigação de longo prazo, que tem como meta a elaboração de uma teoria da significação de produtos audiovisuais. Partimos do pressuposto de que lidamos com um fenômeno complexo, instável e de difícil apreensão empírica — a produção de sentidos em torno de produtos audiovisuais e a relação entre esse processo e a construção de valores morais; entendemos que analisá-lo, descrevê-lo e compreendê-lo precisamos adotar parâmetros investigativos distintos dos tradicionalmente utilizados nas pesquisas educacionais.
        A investigação dos fenômenos ligados à recepção enfrenta dificuldades para se legitimar junto às correntes de pensamento tradicionalmente aceitas, pois requer dos pesquisadores a busca de referências em campos disciplinares distintos para a elaboração de métodos de coleta e tratamento de material empírico. De acordo com Orozco Gómez (2002), o método é um ponto importante da discussão sobre os ER:

Onde e quando realizar investigações dos processos de recepção? Qual a melhor combinação metodológica? (...) como cruzar estratégias de exploração, informações e modalidades de implementação de indicadores e categorias de análise da recepção? Como gerar uma nova teoria? (OROZCO GÓMEZ, 2002:19, trad. própria).

        O autor acredita que no diálogo entre as posições empirista-midiática e culturalista socio-antropológica, proposto pelos ER latino-americanos, as interações com os meios adquirem legitimidade cultural e científica próprias e podem ser aceitas como objeto legítimo de estudo, ainda que “sigan estando bajo a mira de algunos investigadores que nunca han estado convencidos de su potencial para el entendimiento de los procesos de la comunicación contemporáneos” (idem: 16).
        Para pensar teoricamente nosso problema, adotamos como referência os conceitos desenvolvidos pelos estudiosos da recepção, que entendemos serem suficientemente operacionais no contexto de nossa investigação. São eles: a) Processo de recepção,entendido como um fenômeno contínuo, complexo e contraditório, que extrapola o ato de ver; como fator interativo e de negociação entre emissor e receptor; como processo multimediado por inúmeros agentes e situações; como um fator de produção de sentido por parte dos receptores a partir de seus próprios referenciais” (JACKS, 1994:212-213); Multimediações: fatores que atravessam, interferem e ajudam a configurar o processo de recepção, articulando práticas de comunicação, instituições, movimentos sociais, diferentes temporalidades e pluralidade de matrizes culturais em torno da produção de sentido (MARTIN-BARBERO, 1994); Comunicação: processo cultural multimediado e multidirecionado de produção e circulação de significados.
        Buscando promover a articulação entre distintos campos disciplinares, para uma melhor abordagem e compreensão do problema, adotamos como referência no que diz respeito à construção de valores morais as obras de Jean Piaget e de autores brasileiros que analisam essa temática, como Yves de la Taille e Barbara Freitag; para a reflexão sobre personalidade moral e transmissão e difusão de valores trabalhamos com alguns dos conceitos formulados e desenvolvidos pelo catalão Josep Maria Puig (1998). Da obra de Puig vêm as noções de: Campos de problematização moral — espaços sociais de reflexão e ação moral onde valores abstratos são vivenciados pelo sujeito enquanto problemas morais, ajudando a configurar de modo concreto sua personalidade moral e Guias de valor — “as idéias morais e valores, os modelos pessoais, os acordos e declarações, ou as tradições e as tecnologias do eu. Trata-se da cultura moral do meio” (1998:157). Para este autor, guias de valor são “produtos culturais que ajudam os sujeitos a pensar, a comportar-se e em definitivo, a construir-se como pessoas morais” (idem: idem) e podem estar presentes em quaisquer produtos ou práticas culturais com os quais os indivíduos se relacionam cotidianamente. Nessa perspectiva, produtos audiovisuais podem constituir-se como campos de problematização moral, repletos de guias de valor.
        Nossos estudos pretendem integrar-se ao esforço coletivo e cumulativo da produção teórica em torno das relações entre mídia e educação, investigando as relações que crianças e jovens estabelecem com o que vêem na televisão. No que diz respeito à metodologia de pesquisa, entendemos que a melhor forma de investigar as relações que os televidentes estabelecem com a produção audiovisual é perguntando a eles o que pensam sobre o que vêem. Desse modo, questões que dizem respeito a como crianças e jovens percebem e analisam o que assistem na televisão e ao entendimento que têm das mensagens, informações e valores ali veiculados são colocadas para eles, de diferentes maneiras, e suas respostas constituem o centro de nossas pesquisas.

A pesquisa atual

        A pesquisa Crianças, televisão e valores morais teve início em junho de 2004 e a análise dos dados empíricos coletados ainda está sendo finalizada. O estudo tinha como objetivo central descrever e analisar as relações que as crianças estabelecem com o que vêm na televisão; compreender o modo como elas lidam com os conteúdos dos produtos televisivos aos quais têm acesso cotidianamente. Nos interessava também perceber como elas identificam valores presentes nos produtos televisivos e como articulam estes valores aos que elas constroem na interação com outros espaços de socialização como família, escola, grupo de pares etc.
        Pela dimensão da audiência infantil da tevê brasileira, optamos por um estudo de base quantitativa, buscando coletar dados junto a um significativo número de sujeitos que nos permitisse traçar um panorama geral da relação entre crianças e tevê. Seguindo um modelo de estudo desenvolvido pelo UNICEF em outros países, intitulado TV como te quero, optamos por fazer uma chamada pela televisão convidando crianças a participarem da pesquisa enviando-nos suas opiniões sobre a tevê. Tratava-se de realizar um estudo de menor amplitude, com objetivos um tanto distintos dos que orientaram o Projeto TV como te quiero, cujos dados pudessem ser cotejados com aqueles, no intuito de estabelecer algumas comparações entre crianças brasileiras e crianças de outros países. Decidimos manter a chamada pela televisão, veiculando o spot   apenas em âmbito regional e somente através de emissoras de TV públicas, que atingem um público menor e mais específico de crianças.
        Através de um termo de cooperação, a TVE — Rede Brasil de Televisão — se responsabilizou por fornecer a estrutura de produção e de veiculação do spot  televisivo, mas a concepção do produto, seu roteiro e direção ficaram a cargo da equipe de pesquisadores do GRUPEM, especialmente de um de seus membros que é roteirista e diretor de tevê. Em contrapartida, a equipe de educação da TVE pode acompanhar todo o processo de realização da pesquisa, participou das reuniões de pesquisa, teve acesso aos dados empíricos e ao Relatório Técnico e está realizando, em regime de parceria, produtos audiovisuais destinados à divulgação dos resultados.
        Tendo abandonado o modelo de chamada utilizado no projeto do UNICEF, decidimos também ampliar a pergunta dirigida às crianças que passou a ser O que eu penso da tevê. Logomarca da campanha:

        Nossa intenção era coletar um material que nos possibilitasse abarcar não apenas as expectativas que as crianças têm em relação à TV, mas, mais diretamente, a relação que elas estabelecem com o que vêem regularmente, incluindo seus gostos, interesses, críticas e grau de conhecimento da linguagem e dos formatos televisivos. O spot, levado ao ar pela TVE e pela TV Cultura durante todo o mês de setembro e parte do mês de outubro de 2004, foi protagonizado por um ator mirim da Rede Globo, bastante conhecido, que convidava crianças da Região Sudeste, com idades entre 8 e 12 anos, a enviar cartas, desenhos ou mensagens eletrônicas para o grupo de pesquisa, com suas reflexões a respeito do que viam na tevê, do que gostam e do que não gostam de ver e por quê. Para garantir um maior número de respostas, achamos por bem envolver também os professores na campanha: mandamos confeccionar cartazes dirigidos a eles solicitando-lhes que estimulassem seus alunos a participar da pesquisa.

        Enviamos cartazes para algumas escolas do Rio de Janeiro e de outros estados, juntamente com cópias do spot  em VHS. Em apoio ao projeto, o Jornal Folha Dirigida, especializado na difusão de editais de concursos públicos e muito lido por professores publicou cópias do cartaz.

        O spot  ficou no ar entre os dias 2 de setembro e 12 de outubro. Ao longo desse período recebemos cerca de 900 respostas das crianças, entre desenhos e textos. Algumas (poucas) vieram de estados do Nordeste, como Maranhão e Bahia, que recebiam o sinal emitido pela TVE e TV Cultura para a Região Sudeste, mas a imensa maioria veio dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Mais de 90% das respostas foram coletadas por professoras de escolas públicas e particulares, interessadas em participar da pesquisa, que as enviaram a nós pelo correio.
        Enquanto as cartas chegavam, a equipe de pesquisa começou a desenvolver a metodologia de análise do material empírico, com o apoio do consultor internacional do projeto, Professor Dr. Pier Cesare Rivoltella, diretor do Mestrado em Mídia–Educação da Universidade Católica de Milão (Universittá Cattolica dei Sacro Cuore), com larga experiência na condução de estudos dessa natureza, que havia, inclusive, participado de pesquisa semelhante na Itália. O Professor Rivoltella colaborou conosco durante todo o mês de setembro e, além de participar dos trabalhos do GRUPEM, co-orientou mestrandos e doutorandos do Diretório de Pesquisa O jovem e a Mídia na elaboração de seus projetos individuais de pesquisa. Em parceira com o Professor Rivoltella, a equipe elaborou uma etiqueta de catalogação e classificação dos materiais recebidos que incluía, além da identificação do material, informações sobre:
a) idade e sexo da criança;
b) origem: se foi enviado pela criança individualmente (correio) ou pela escola que ela freqüenta (escola) — neste caso, se escola pública ou particular;
c) cidade/estado de onde provém a carta;4
d) tipo de material: 1) desenho; 2) desenho com texto; 3) texto com desenho; 4) somente texto;
e) Cromia do desenho: 1) se uma cor; 2) se preto e branco; 3) se colorido;
f) Contexto (exclusivamente relacionado aos desenhos, diz respeito ao contexto em que a tv aparece representada): 1) como aparelho, sozinha no papel; 2) como aparelho, associado a outros equipamentos da casa (cadeiras, poltronas, armários, mesas etc.); 3) conteúdo da tevê (representação da programação).
g) Valoração (somente para desenhos: se há indícios de valoração no próprio desenho): 1) positiva; 2) negativa; 3) não se aplica;
h) Consumo (diz respeito às condições de visualização representadas no desenho): 1) criança sozinha; 2) acompanhada de outras crianças; 3) acompanhada de um adulto; 4) não se aplica.

Identificação origem(1) (2) Escola (1) (2) Cidade Estado
Sexo (1) (2) idade
CROMIA TEXTO   contexto VALORAÇÃO CONSUMO
1 2 3 1 2   3 4; 1 3, 2 1 2 3 4 1 2 3 4

        Uma etiqueta como esta foi colada em cada um dos textos e desenhos produzidos pelas crianças e, em seguida, todos os dados registrados nela foram inseridos no banco de dados do ambiente SPSS, programa para análise de variáveis quantificáveis, cujas tabelas de freqüência serão apresentadas em um próximo item deste relatório.
        Foram considerados textos, além das cartas que nos foram enviadas, frases curtas e observações sobre a tevê que acompanham os desenhos, como neste que se segue:

        Todos os textos foram digitados e passaram a configurar uma das fontes de dados empíricos da pesquisa; em seguida foram endentados, isto é, fragmentados em pequenas unidades de texto — a menor unidade que, para o pesquisador, ainda comporta significação — salvos no formato apresentado abaixo, para que pudessem ser inseridos em programa especialista em análise de dados qualitativos:

*T134
*Pedro
*09 anos
*escola pública
*Serro/MG
*texto escrito em papel mimeografado pela professora,
*com a logo da pesquisa
A TV na minha vida
Eu acho a TV o máximo,
quase todos os dias eu acisto [assisto]5 .
Eu adoro acistir [assistir]
jogos, sitio do pica-pau amarelo etc.
Só que eu detesto novelas e horário político.
No horário político, nós telespectadores somos obrigados a ouvir promessas
que nunca serão compridas [cumpridas]
e
na maioria das vezes de candidatos
que não conseguem transmitir simpatia
e
menos ainda confiança,
mas isso é insignificante
na comparação de outras programações
que nos traz [trazem] informação e entretenimento.
A verdade,[] é que a televisão
tem um significado muito grande na vida do ser humano.
Não importa a idade ou posição social,
ela veio e tomou conta do planeta,
pois é na frente da telinha
que na maioria das vezes damos os melhores sorrisos,
nos emocionamos com alegrias
e
deixamos as vezes sem perceber rolar uma lágrima no rosto
ao ver a transmissão de um belo jogo numa final de copa do mundo,
ou infelismente [infelizmente]
ao poder ver do outro lado do mundo aviões
se chocando contra as mais belas torres gêmeas, nos Estados Unidos.
Esta é a prova de que a TV é
sem dúvida uma forma estraordinaria [extraordinária]
de demonstrar ao mundo os mais belos espetáculos
ou o mais triste que os nossos olhos já viram.
Portanto é a TV o maior meio de comunicação existente.

        Em seguida, foram inseridos no ambiente NUD*IST. Através deste programa foram a realizadas diferentes análises descritivas dos textos tendo como ponto de partida a eleição, por parte dos pesquisadores, de categorias de análise (teóricas — definidas previamente a partir da literatura de referência e não teóricas — extraídas da primeira leitura geral dos textos, realizada durante o processo de preparação dos mesmos para inclusão no banco de dados do programa). Estas categorias (nodes do programa) permitiram a organização de informações, impressões, idéias, opiniões e reflexões expressas, por escrito, pelas crianças a respeito dos diferentes canais de tevê a que têm acesso e de sua programação; dos seus programas prediletos; do que gostam e não gostam de ver na tevê e por quê; da violência presente nos produtos televisivos ficcionais e não-ficcionais; do impacto de imagens de violência sobre a visão de mundo delas; do papel desempenhado pela tevê no cotidiano delas — tempo passado diante da tela, o que fazem ou deixam de fazer por causa da tevê; das concepções acerca do que é real e do que é ficcional na tevê e concepções sobre a influência da tevê na sociedade, além de temáticas mais gerais como consumo de bens materiais e simbólicos que a tevê propicia, relação que elas têm com os produtos-padrão da tevê mundial: telenovelas, telejornais e desenhos animados, entre outras.
        Os textos inseridos no ambiente NUD*IST foram fracionados previamente em unidades de significação por exigência da estrutura deste programa para que pudessem ser minuciosamente “vasculhados” um a um ou em conjunto, utilizando as ferramentas disponíveis; os fragmentos foram “retirados” dos seus respectivos textos de origem e reagrupados por afinidade temática — assim, por exemplo, foram colocados juntos, sob a codificação desenhos japoneses, todos os fragmentos que diziam respeito às impressões que as crianças têm desses produtos ou sob a codificação telenovelas todos os fragmentos que traziam comentários das crianças a esse respeito e assim por diante.
        Todos os textos foram analisados por todos os membros da equipe, organizados em duplas, seguindo a mesma metodologia de análise, tendo como parâmetro o estudo de uma temática específica. Este trabalho, lento e minucioso, ainda não foi concluído, mas resultados parciais das análises já estão sendo apresentados em congressos.
        Os desenhos foram digitalizados e gravados em CD, do qual os membros da equipe receberam cópia. Diante da dificuldade de interpretar os desenhos, em função de nosso total desconhecimento das condições em que haviam sido produzidos, decidimos visitar algumas das escolas que nos haviam enviado materiais para discutir com as crianças autoras as interpretações que estávamos dando aos desenhos delas. As visitas foram realizadas em dezembro de 2004, em duas escolas particulares do Rio de Janeiro, uma da Zona Sul e outra da Zona Oeste da cidade, e, com autorização da direção da escola, fizemos uma entrevista em grupo com as crianças, que foi videogravada. Apresentamos a elas nossas interpretações dos desenhos que elas nos haviam enviado e, na maior parte das vezes, elas discordaram do que havíamos interpretado.
        Aproveitamos o encontro para discutir com elas duas temáticas recorrentes nos desenhos e textos que vínhamos analisando: violência na tevê e o vício de ver tevê, esta última, utilizada muito fortemente pelas crianças para expressar a compulsão de ver tevê que elas afirmam que têm.
        Na análise dos desenhos, para evitar inferências exageradas, adotamos como parâmetro inicialmente o grau de proximidade que apresentavam, aos nossos olhos, com as temáticas já identificadas nos textos escritos. Cada dupla de pesquisadores procurou tomar os desenhos como referências complementares à interpretação dos textos, o que permitiu uma ampliação da percepção que tínhamos das idéias, pensamentos e pressupostos expressos pelas crianças nos materiais que vínhamos analisando. Esse procedimento ajudou a compreender melhor o modo como as crianças estavam lidando com cada uma daquelas questões.
        Em um único caso os desenhos foram tomados como fonte exclusiva de análise temática: os que se referem ao que denominamos, teoricamente, por contexto de visualização. Há no conjunto dos desenhos que recebemos um número significativo (131) no qual a criança apresenta o contexto em que ela vê tevê — na sala de estar, no quarto, com a família, com outras crianças, sozinha, deitada, sentada, brincando etc. Este material foi objeto de descrição densa por parte de membros da equipe, tendo sido registradas recorrências e diferenças expressivas nos modos de representar esse contexto. Essa análise está sendo finalizada e integrará o relatório técnico da pesquisa.

Televisão, audiência e recepção: considerações teóricas sobre o papel do espectador

        Num país onde mais de 100 milhões de pessoas vêem televisão todos os dias, incluindo algumas dezenas de milhões que, vivendo abaixo da linha de pobreza, têm pouco ou nenhum acesso a bens culturais e/ou a uma educação de qualidade, é compreensível que a TV goze de considerável poder de penetração e exerça grande influência sobre opiniões, crenças e visões de mundo daqueles que com ela se relacionam mais intensamente, especialmente, dos que a têm como única fonte de informação e de lazer. Os poucos proprietários dos grandes conglomerados de comunicação sabem disso e procuram fazem uso desse potencial para, mantendo-se à frente nos indicadores de audiência, ampliarem seus lucros e participar da luta política.
        Segundo Martin-Barbero (2002), a comunicação desempenha hoje papel decisivo na infra-estrutura tecnológica da globalização e na “mundialização do imaginário e do ideário neoliberal de desregulamentação do mercado e deslegitimização do espaço e dos serviços públicos” (p.10). Em nível mundial, ela está concentrada nas mãos de megacorporações globais — AOL–Time Warner, Disney, Sony, Fox, News Corporation, Viacom e Bertelsmann.
        No Brasil, não é diferente: uma única corporação controla agências de notícias locais, centenas de retransmissoras de rádio e de TV e parte significativa da imprensa escrita, atingindo praticamente 100% do território nacional com pelo menos um desses meios. Isto possibilitou, ao longo dos últimos 30 anos, a implantação, em nível nacional, de um padrão estético-narrativo de produtos ficcionais e de um formato mais ou menos homogêneo de difusão de informações, além de significativa influência na vida social. Os poucos concorrentes que disputam espaço no setor buscam reforços em corporações internacionais para competir internamente, mas, de um modo geral, seguindo o mesmo modelo.
        Não resta dúvida de que em sociedades midiáticas como a nossa grandes redes de comunicação configuram-se como instâncias de poder, especialmente aquelas que dispõem de emissoras de televisão, vedetes contemporâneas da comunicação de massas. Entretanto, este poder não é ilimitado nem monolítico e muito menos isento de contradições. Ao contrário, disputas intensas pela audiência geram lutas concorrenciais mais ou menos violentas entre as corporações, que enfrentam conflitos de posições também internamente. Ou seja, grandes empresas de comunicação são como qualquer outra área da vida social: arenas de luta onde diferentes posições políticas, crenças, pressupostos e visões de mundo buscam se afirmar umas frente às outras.
        Acreditamos, como Martin-Barbero, que nas brechas abertas pelas lutas de poder, os “desempoderados” ocupam espaço. Nesse contexto, culturas não-hegemônicas, minorias, movimentos sociais, emissoras livres de rádio e tv, produtores independentes, propostas estéticas alternativas e projetos de sociedade contrários ao modelo-padrão conquistam espaço e ganham visibilidade. Na rede mundial de computadores configuram-se novas oportunidades de produzir fraturas no poder da comunicação de massa a partir da veiculação descentralizada de informações sobre as quais o sistema não tem controle; o desenvolvimento de uma tecnologia digital mais barata e a difusão de informações por cabo e satélite tornaram a produção e veiculação de textos, imagens e sons acessível a um número infinitamente maior de pessoas e grupos sociais que passaram a expressar e difundir suas idéias em âmbito regional ou mundial, como é o caso, por exemplo, do Fórum Social Mundial Contra a Globalização ou do movimento indígena de Chiapas.
        Desse modo, concepções diferentes de comunicação e pressupostos contrários ao pensamento único e ao modelo conservador passaram também a disputar posições em um sistema muito mais atravessado por contradições internas do que querem nos fazer crer alguns adeptos (pouco críticos!) da Teoria Crítica. Significa dizer que o sistema de comunicação descrito por Adorno e Horkheimer em 1947 que, afirmando-se como Indústria Cultural, ampliou o poderio econômico dos Estados Unidos sobre um mundo devastado pela Segunda Guerra, se complexificou ao longo dos últimos 60 anos. O mesmo avanço tecnológico que viabilizou uma comunicação de massas que dá sustentação à globalização também permitiu a implantação de rádios, tevês e jornais comunitários e corporativos, que difundem idéias e opiniões contrárias à globalização; setores historicamente silenciados ou, no mínimo, ignorados pelas mídias fazem uso dessas mesmas mídias para se integrarem ao cenário das lutas pelo poder; movimentos sociais urbanos pressionam governos e agências reguladoras em torno da necessidade de democratização da comunicação enquanto fazem uso dos meios em suas lutas; tudo isso gera contradições cada vez maiores no interior de um sistema bem mais poroso do que o descrito originalmente pelos teóricos da escola de Frankfurt.
        É, portanto, impossível defender hoje o antigo paradigma que descrevia a comunicação como processo linear unidirecional: fonte -> emissor -> estímulo -> televidente -> efeito, no qual o televidente é visto como receptáculo inerte, passivo, vazio psicológica e culturalmente. Segundo Fuenzalida (2002), a tese da passividade perceptiva do espectador foi sustentada teoricamente durante muitos anos pelo behaviorismo, pela epistemologia marxista e pelo althusserianismo, que concebia os meios de comunicação exclusivamente como aparelhos ideológicos do estado, expressão que, segundo o autor, é uma metáfora das “máquinas da Revolução Industrial atuando fisicamente sobre os receptores, concebidos como objetos manipuláveis” (p.22). Nessa perspectiva, “o emissor manejaria capacidades onipotentes, a partir de suas mensagens, para produzir efeitos (publicitários, comportamentais, ideológicos, políticos, educativos etc.) nos indefesos e passivos televidentes” (idem). A maioria dos teóricos da recepção questiona esse modelo e, mesmo reconhecendo o poder das mídias, procuram resgatar os modos de réplica do espectador. Segundo Martin-Barbero (2004), esse resgate “desloca o processo de decodificação do campo da comunicação, com seus canais, seus meios e suas mensagens para o campo da cultura, dos conflitos entre a cultura e a hegemonia. Aceitar isso é também completamente diferente de relativizar o poder das mídias” (p.127).
        Nossas investigações partem do pressuposto de que, por mais eficientes que sejam as estratégias das mídias para seduzir e “conduzir” os receptores, estes estabelecem relações ativas com os textos ou mensagens da comunicação. Sabemos que os textos midiáticos são carregados de sentido e servem a propósitos e interesses pré-estabelecidos, o que indica determinações sociais, culturais e políticas muito concretas na relação audiência-televisão e isto nos impede de afirmar a existência de uma audiência livre e sem restrições. Os textos limitam as leituras e as interpretações, entretanto não as conformam. Para Silverstone (1994), audiência ativa é quase uma redundância, pois o conceito de audiência pressupõe, em si, algum grau de atividade na relação com o meio, mesmo que não possamos definir exatamente o que significa atividade neste contexto.
        Para Fuenzalida (2002), um espectador ativo não tem necessariamente que estar atento e concentrado, refletindo sobre o que está sendo exibido: de um modo geral, a audiência outorga aos televisores ligados em casa uma atenção variável, uma atenção que pode ser concentrada em alguns programas, pode ser mais auditiva que visual em outros e completamente distraída em alguns casos, quando se olha o televisor de passagem, apenas para tomar ciência do que está sendo exibido (p.52). Esta “atividade” não tem também que ser criativa ou racional o tempo todo: a atividade pode referir-se a uma leitura criativa (...) mas pode também se referir ao processo mais trivial de fazer encaixar o texto nos marcos ou hábitos familiares (Livingstone apud Silverstone, 1994: 253). Reconhecer que há diferentes graus de atividade na relação com a tevê não significa afirmar uma total autonomia do espectador face ao meio, nem negar a força ideológica das mensagens, apenas admitir que há formas mais e menos criativas de estar diante da tevê e que isso não implica, necessariamente, passividade.
        Se chego cansado do trabalho, tiro meus sapatos, jogo-me no sofá e olho, distraidamente por alguns minutos a tela da tevê ou uso o controle remoto para “zapear” os canais, sem me deter em nada em especial, estou reafirmando minha passividade? pergunta Silverstone. Nesse sentido, ver televisão seria uma atividade mais passiva do que ler manchetes de jornais colocados do lado de fora de uma banca de revistas? Se diferentes audiências têm diferentes necessidades e habilidades e integram diferentes contextos sociais e culturais, o que ou quem pode determinar seu grau de atividade? Para Roger Silverstone (idem) não se trata de estabelecer se uma audiência é ou não é ativa, mas, acima de tudo, de estabelecer se esta atividade é significativa:

Podemos afirmar que la pratica de mirar televisión es activa en tanto incluye alguna forma de acción más o menos provista de sentido (incluso en su modo más habitual o ritual). En este sentido, no existe la pratica passiva de ver televisión (...). Podemos afirmar que ver televisón ofrece diferentes cosas, diferentes experiencias, a diferentes espectadores. Pero reconocer que la diferencia carece de toda utilidad si no somos capaces de especificar las bases de esas diferencias” (p.255).

Ao longo dos últimos vinte anos, os estudos de recepção latino-americanos vêm documentando a capacidade das audiências de discriminar e produzir sentidos a partir do consumo que fazem da televisão, sentidos que são transformados ou negociados. Pretendemos com nossos trabalhos somar esforços no sentido de ampliar essa documentação para entendermos melhor como isso se dá.

Primeiras aproximações do material empírico coletado
        1) Perfil das crianças que responderam à chamada feita pela tevê:

        Recebemos desenhos e textos de oitocentas e oitenta e cinco crianças (885); considerando apenas as respostas válidas (em alguns casos a informação solicitada não consta do material enviado), a maioria das crianças (66,8 %) tinha, na época, entre 9 e 11 anos (em 32 % dos desenhos não foi informada a idade) como indica a tabela abaixo:

Quanto ao gênero, 45,6 % são meninos e 59,8 %, meninas

56,1 % das crianças estavam em escolas públicas e 43,9 % em escolas particulares:

Quanto à origem das respostas, 59,8% veio de Minas Gerais, 34,8% do Rio de Janeiro e 4,5 % São Paulo:

        Os materiais de que dispomos não nos permitem verificar variáveis sócio-econômicas, pois não foram solicitadas às crianças informações referentes a este quesito.

2) Análise temática de desenhos e textos

        O material elaborado pelas crianças é muito rico, denso e interessante. Sua análise tem nos permitido formular algumas hipóteses a respeito das relações que elas estabelecem com a televisão e do modo como lidam com as questões recorrentes nos debates públicos sobre televisão: violência, relação entre ficção e realidade, consumo excessivo de produtos televisivos, adequação da programação às faixas etárias, entre outras.
        Uma análise mais global6 dos textos indica que:
a) as crianças querem muito ser ouvidas sobre o que pensam sobre a tevê: acham que têm muito a dizer sobre o assunto e que gozam de absoluta legitimidade para fazê-lo.«Foi uma boa idéia colocar esse projeto porque eu tenho muito para falar», escreveu uma menina de 12 anos; «adorei esse projeto O que as crianças acham da televisão. E o que eu acho é que sem a tevê eu não vivo e quem criou esse projeto está de parabéns!», escreve Lucas, um menino de 11 anos que nos enviou sua carta individualmente. Estas foram algumas das muitas observações nesse sentido feitas pelas crianças que nos escreveram;
b) as crianças se queixam, insistentemente, do excesso de imagens de violência «real» exibidas na televisão, imagens que associam diretamente aos telejornais; afirmam que não querem mais ver mortes, assaltos, assassinatos, tragédias, pois cenas desse tipo «fazem as pessoas lembrar de coisas que elas querem esquecer»;
c) elas afirmam, de forma recorrente, que adoram ver tevê e que não se importam com o que os adultos dizem a esse respeito: «A tevê é muito boa, eu adoro a televisão, principalmente, os programas que ela passa para mim. Para os adultos, a televisão é ruim, porque eles acham que se as crianças ficarem assistindo televisão as crianças não aprendem coisas boas e nada da escola. Hoje vou chegar em casa, vou ligar minha televisão e vou assistir. Acabou a minha história» (Camila, 12 anos);
d) elas gostam de quase todos os gêneros de programas veiculados pela tevê: novelas, desenhos animados, programas humorísticos, filmes, seriados, «programas sobre bichos e sobre plantas» e «até programas educativos», mas isso não parece fazer delas espectadores idiotizados, pois fazem críticas muito interessantes, pertinentes e bem elaboradas ao que consideram ruim ou pernicioso ou inadequado;
e) muitas crianças argumentam que sem a tevê não teriam nada para fazer e que vêem tevê apenas «para passar o tempo»; este é um dado bastante preocupante, pois sugere falta de outras opções de lazer entretenimento além de um acesso bastante restrito aos bens culturais em geral;
f) essas crianças analisam a televisão com muita competência, quase como especialistas; demonstram conhecer a tevê também pelo lado de dentro, conhecem as linguagens de que ela se utiliza, sua estrutura de produção, sua lógica interna e modos de intervenção.
        Essas crianças discutem com relativa precisão as diferenças e semelhanças entre os diversos canais e programas, tecem considerações pertinentes sobre eles, comparam as grades de programação segundo a qualidade dos produtos exibidos, não necessariamente aqueles que são endereçados a elas, e tecem críticas mais ou menos elaboradas a esse ou àquele produto em especial: o programa X «não é bom porque tem muita baixaria e só ensina o que não serve»; «muitas pessoas não gostam do programa Y, eu gosto, porque mostra as coisas que acontecem no país, na política e nas novelas, criticando».
        Identificam com relativa facilidade o endereçamento dos produtos veiculados — a que público eles se destinam, a que faixa etária etc. — e emitem suas opiniões tendo como base essa percepção:«Não gosto do programa X porque é para criancinha pequena; gosto de Y porque é feito para adolescentes» ;«não estou dizendo que Y é um programa produtivo, pois tem muita baixaria, mas também não é ruim, pois nos alerta sobre coisas que irão acontecer nas nossas vidas»;«gosto de programas sobre artistas e sobre forma, porque sou mulher e as mulheres se interessam por essas coisas».
        Percebem claramente a diferença entre novelas e seriados e entre seriados brasileiros e seriados «americanos» (tais como OC, Friends, Kenan e Kell); sabem a diferença entre um seriado «engraçado» e programas «humorísticos»; mencionam a nacionalidade de seus desenhos prediletos (se é japonês, americano ou brasileiro) e não hesitam em dar opiniões sobre a qualidade dos mesmos: «odeio o desenho X, porque é bobo, gosto de Y porque tem aventura e ação e é muito divertido». Algumas crianças chegam a afirmar que certos programas podem ser «educativos», «apesar de serem apenas entreterimento [sic!]».
        Essa «expertise» parece ter sido conquistada, mais do que adquirida em razão da participação em atividades educativas realizadas com este objetivo, pois são poucas e pontuais as ações institucionais destinadas ao que se convencionou chamar de educação para os meios. Em conformidade com estudos recentes realizados no Brasil (Pereira, 2003; Fernandes, 2003 e Salgado, 2005) os textos que recebemos sugerem que os conhecimentos de que as crianças lançam mão para dialogar com a tevê advém, principalmente: a) do convívio diário, prolongado e precoce com a televisão que, articulado a muitas conversas sobre o tema com os pares e com os adultos, lhes concede um domínio das linguagens e formatos televisivos; b) do que lêem e ouvem a respeito da televisão — elas comentam nos textos as opiniões dos adultos a esse respeito: «minha avó diz...», «meus pais falam», «os adultos dizem» etc.; c).do uso recorrente e paciente do controle remoto, não apenas para «zapear»7 , como fazem adolescentes e adultos, mas para escolher o que desejam ver (os textos que recebemos nos informam que elas vêem diferentes canais ao longo do dia e que sabem, exatamente, o horário e o canal em que são exibidos seus programas favoritos); a escolha do que ver parece ser uma prática muito valorizada por elas, pelo menos é o que nos sugere a presença, em um número muito significativo dos desenhos enviados a nós, de um grande, colorido e detalhado aparelho de controle remoto, sempre colocado ao lado do aparelho de televisão.
        As análises temáticas dos materiais que coletamos nos sugerem que as crianças de fato têm muito a dizer sobre um dos temas que mais preocupa pais e professores hoje em dia: a relação delas com a tevê. Possivelmente não deve ser muito diferente no que diz respeito à Internet ou mesmo aos conteúdos de natureza escolar. Desenvolver métodos adequados para ouvi-las e dialogar com elas sobre estes e outros assuntos pode trazer excelentes resultados para as pesquisas que estão sendo desenvolvidas na interface entre educação e comunicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CANCLINI, N. G. (2001): «Definiciones en transición», in MATO, D. (Coord.): Estudios Latinoamericanos sobre Cultura y Transformaciones Sociales en tiempos de globalización. Buenos Aires, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO); 57-67.

CANCLINI, N. G. (2003): Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.

FUENZALIDA, Valerio (2002). Televisión abierta y audiencia en America Latina. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma

GEERTZ, C. (1989): A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC editores.

LIVINGSTONE, S. (2003): The Changing Nature and Uses of Media Literacy. Media@LSE Electronic Working Papers 4.

LIVINGSTONE, S. (2003a): «Review of Television, Childhood and the Home: A History of the Making of the Child Television Audience in Britain», en Sociology 54, 02.

MARTIN-BARBERO, J. (2001): Os exercícios do ver. São Paulo, Editora Senac.

_______________________ (2002): La educación desde la comunicación. Buenos Aires, Grupo Editorial Norma.

_______________________ (2003): Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

______________________ (2004): Ofício de cartógrafo. Travessias latino-americanas de comunicação na cultura. São Paulo, Edições Loyola.

OROZCO GÓMEZ, G. (1991): «La audiencia frente a la pantalla», Una exploración del processo de recepción televisiva, en Diálogos de la Comunicación, 30.

_______________________ (2001): Televisión, audiencias y educación. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma.

PUIG, Josep Maria. (1998): A construção da personalidade moral. São Paulo, Ática.

SARLO, B. (1997): Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro, editora UFRJ.

SILVERSTONE, R. (1994): Televisión y vida cotidiana. Buenos Aires, Amorrortu editores.

SILVERSTONE, R.(2002): Por que estudar a mídia? São Paulo, Loyola.



NOTAS
1 Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia – GRUPEM / www.users.rdc.puc-rio.br/midiajuventude
2 Estima-se que hoje mais de 30% dos lares já contam com mais de um aparelho de TV.
3 Lojas onde existem máquinas e computadores com jogos eletrônicos.
4 No spot exibido pela televisão, o ator solicitava às crianças que enviassem seus desenhos e textos com nome, idade e cidade onde moravam. Como grande parte do material veio por intermédio de professores, foi possível também identificar série e tipo de escola: pública ou particular.
5 Decidimos manter os erros de ortografia originais, porque os consideramos fonte de estudos, mas inserimos entre chaves a palavra escrita corretamente.
6 Análises temáticas mais detalhadas integram o relatório técnico da pesquisa e serão publicadas em breve.
7 Esse é um conceito amplamente utilizado nos estudos de recepção televisiva para descrever certa forma de ver que implica trocar freqüentemente de canal utilizando o controle remoto, sem assistir a nenhum programa integralmente (Sarlo, 2000).