O Self, linguagem e reflexividade: processos de aprendizagem em Rorty, Habermas e Taylor1

Ralph Ings Bannell
PUC-RIO

RESUMO

A partir do pressuposto da contingência do sujeito e da razão, tentarei mapear respostas ao ‘esclarecimento fundamentalista’ e suas concepções do sujeito e da razão, nas tradições de pensamento que poderiam ser chamadas ‘hermenêuticas’, concentrando na hermenêutica ‘fraca’ de Richard Rorty, na hermenêutica ‘crítica’ de Jürgen Habermas e na hermenêutica ‘forte’ de Charles Taylor. Pretendo investigar de que forma suas idéias podem fundamentar concepções de aprendizagem. A análise mostrará os problemas associados às tentativas de Rorty e de Habermas de pensar a possibilidade de práticas reflexivas, bem como o sujeito que se engaja em tais práticas. Depois, esboçarei a concepção do sujeito de Taylor e a hermenêutica forte na qual é fundamentada. Procurarei mostrar que a concepção do sujeito reflexivo formulada por Taylor oferece uma possibilidade de pensar o Self e a reflexão numa maneira que os fundamenta nas condições materiais e históricas da vida, já que evita formas extremas de universalismo e de contextualismo. Terminarei com alguns comentários breves sobre as práticas reflexivas que se fundamentam nessas variedades de hermenêutica e suas implicações para práticas educativas.

Palavras Chaves: hermenêutica, linguagem, racionalidade, subjetividade, práticas reflexivas.

Abstract:

The Self, language and reflexivity: learning processes in Rorty, Habermas and Taylor

Starting from the presupposition of the contingency of the subject and of reason, I will try to map responses to “Enlightenment Fundamentalism” and its conceptions of reason and the subject, in the traditions of thought that can be called hermeneutic, concentrating on the “weak hermeneutics” of Richard Rorty, the “critical hermeneutics” of Jürgen Habermas and the “strong hermeneutics” of Charles Taylor, as well as how their analyses ground conceptions of learning. The analysis will expose the problems associated with the attempts of Rorty and Habermas to rethink the possibility of reflective practices, as well as the subject who engages in them. I will then outline the conception of the subject and of rationality developed by Taylor. I will attempt to show that his “strong hermeneutics” offers a possibility of rethinking the Self and reflection in a way that grounds them both in the material and historical conditions of life, while avoiding extreme forms of both universalism and contextualism. I will end with brief comments about the reflective practices supported by these three varieties of hermeneutics and their implications for educational practice.

Key words: hermeneutics, language, rationality, subjectivity, reflective practices.

Linguagem, racionalidade e subjetividade

        Para falar no sujeito, na razão e na identidade, hoje em dia, temos que reconhecer a chamada ‘virada lingüística’ na filosofia contemporânea, ou seja, o insight  fundamental de que somos seres lingüísticos e que sempre nos encontramos dentro de linguagem sem nenhum ponto de referência fora dela. Como Habermas disse, “não podemos pular fora do círculo mágico de nossa linguagem” (Habermas, 1998: 357). Isso quer dizer, além de outras coisas, que a historicidade da realidade social e de nossa compreensão dela, bem como de nossa identidade, têm que ser vista como refletida na e constituída pela linguagem. Se todo fenômeno humano é histórico, inclusive nossa subjetividade, e não pode ser compreendido senão através da e na sua historicidade, então o papel da linguagem na constituição e compreensão de nossa subjetividade se torna central.
        Vale a pena lembrar que o modelo de linguagem que se tornou dominante na tradição filosófica ocidental é aquele desenvolvido por Platão. Como se sabe, Platão defendia que o pensamento era uma espécie de visão intelectual capaz de captar a ordem objetiva das coisas. Como nos lembra Manfredo de Oliveira, “a tarefa da linguagem consiste (...) na expressão adequada” dessa ordem: “Na perspectiva de Platão há uma correspondência fundamental, uma isomorfia entre estrutura gramatical e estrutura ontológica. (...) A teoria platônica da linguagem, portanto, afirma a correspondência fundamental entre linguagem e ser” (Oliveira, 1996:19-20). Para Platão, a linguagem é um instrumento que separa, ou distingue, classes de coisas e, portanto, separa essências. Como diz Manfredo de Oliveira, para Platão, “quando é exato, um nome apreende todas as coisas, entre as diversas, que têm a mesma essência e por isto ele serve para ensinar. (...) A adequação se mede de acordo com sua capacidade, enquanto estrutura lingüística, de corresponder à estrutura ontológica”. (ibidem: 20).
        Para Platão, então, a linguagem tem um poder cognitivo, ou seja, “Quem conhece os nomes conhece as coisas” (Crátilo: 435d.). Oliveira mais uma vez nos mostra as implicações dessa doutrina:

se os nomes podem ser verdadeiros ou falsos, argumenta Platão, e se temos a possibilidade de decidir sobre isso, então deve haver algo que nos revela, sem os nomes, que nomes são verdadeiros ou não, É possível, portanto, conhecer as coisas sem os nomes. Aqui está a tese fundamental de Platão e de toda filosofia do Ocidente: ele pretende (...) mostrar que na linguagem não se atinge a verdadeira realidade (...) e que o real só é conhecido verdadeiramente em si (...) sem palavras, isto é, sem a mediação lingüística. A linguagem é reduzida a puro instrumento, e o conhecimento do real se faz independentemente dela. (...) A linguagem não é, pois, constitutiva da experiência humana do real, mas é um instrumento posterior, tendo uma função designativa” (Oliveira, 1996:21-22).

        Na transição para a modernidade, noções de razão e identidade, previamente consideradas exteriores ao indivíduo foram interiorizadas. Como se sabe, isso se deu na concepção moderna do sujeito, desenvolvida na filosofia moderna de Descartes e Locke até Kant, bem como na concepção radical de reflexão (Taylor, 1989). No entanto, a idéia da linguagem como um instrumento, com a ênfase na sua função designativa, permaneceu, como uma idéia de uma essência humana, um Self desvinculado de seu contexto. Essa concepção moderna do Self é bem elaborada por Luntley:

O Eu verdadeiro será o Eu compreendido de modo que abstraia das particularidades e contingências da história e circunstância. Será o Eu descrito como ele é mesmo independente das características que são possuídas eventualmente, características que não teriam sido a verdade do Eu se as circunstâncias históricas fossem diferentes. O que pode figurar em tal conceito do Eu? Qualquer característica que me faltasse não poderá ser algo que é parte da minha essência e até gênero seria algo extrínsico à minha essência. Se o gênero não é imprescindível ao nosso conceito do Eu, então também deve ser todas aquelas características que colhemos como função dos caminhos históricos particulares que percorremos pela vida. Assim, classe, educação, habilidades, crenças, gostos e valores são coisas que podemos imaginar que fossem diferentes para nós. Isto significa que nenhuma dessas coisas pode ser parte do nosso verdadeiro Eu no quadro modernista. Nenhuma dessas características estaria constitutiva de nós mesmos, mas características que o Eu podia ou não possuir dependendo das circunstâncias históricas... O conceito do Eu que a modernidade fornece é uma concepção do Self sem a sua história, gênero, classe, realizações, valores, paixões e crenças. (Luntley, 1995:151)

        Mas é exatamente essa concepção do sujeito que é rejeitada pela maioria de perspectivas filosóficas hoje em dia, bem como a concepção instrumental da linguagem. Ou seja, nosso conhecimento e nossa identidade são constituídos pela linguagem. Essa reação ao que pode ser chamado o “Esclarecimento fundamentalista2” e suas concepções do sujeito e da linguagem faz parte de várias correntes filosóficas contemporâneas, tais como a filosofia “pós-analítica” de Rorty, a hermenêutica filosófica de Heidegger, Gadamer e Taylor, a Teoria Crítica de Habermas, o pós-estruturalismo de Foucault e a “filosofia da diferença”, entre outros.
        No pensamento pós-estruturalista, por exemplo, uma idéia central é que práticas de significação, representação e identificação são práticas simbólicas e práticas discursivas sujeitas ao ‘jogo’ de diferença. Práticas culturais, portanto, estão na base do que somos e, dado a diversidade cultural, não há nada de universal em nossa subjetividade e em nossas identidades. Vou mencionar somente duas conseqüências dessa perspectiva. Primeiro, a rejeição da idéia clássica de representação. Nas palavras de Tomáz Tadeu da Silva, essa idéia

está ligada à busca de formas apropriadas de tornar o “real” presente – de apreendê-lo o mais fielmente possível por meio de sistemas de significação (...) [um]a representação interna ou mental – a representação do “real” na consciência. (...) O pós-estruturalismo e a chamada “filosofia da diferença” erguem-se, em parte, como uma reação à idéia clássica de representação. É precisamente por conceber a linguagem – e, por extensão, todo sistema de significação – como uma estrutura instável e indeterminada que o pós-estruturalismo questiona a noção clássica de representação (Silva, 2000: 90).

A segunda conseqüência da crítica pós-estruturalista é que não existe a possibilidade de uma identidade concebida, nas palavras de Stuart Hall (2000: 108), como “aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história. Esta [nova] concepção não tem como referência aquele segmento do eu que permanece, sempre e já, “o mesmo”, idêntico a si mesmo ao longo do tempo”. Basicamente, a idéia é a de que “a identidade é (...) marcada pela diferença” (Woodward, 2000: 9). Dessa perspectiva, a contingência do Self e da linguagem está contraposta à suposta universalidade deles no pensamento moderno.

        Parece-me que essa crítica ao “Esclarecimento Fundamentalista” é correta, mas, como Hall reconhece, não implica no “abandono ou abolição, mas uma conceitualização do ‘sujeito’” (Hall, 2000: 105). Também, ao meu ver, não exige o abandono da racionalidade, mas sua reconceitualização. Obviamente, não há espaço num artigo para analisar essas questões em todos os seus detalhes. Vou me contentar com uma avaliação de três vertentes do que poderia ser chamado de hermenêutica 3: a hermenêutica “fraca” de Richard Rorty, a hermenêutica “crítica” de Jürgen Habermas e a hermenêutica “forte” de Charles Taylor. Cada filósofo oferece uma maneira diferente de resgatar a reflexão dentro de um pensamento “pós-metafísico”, que entende o sujeito como constituído na finitude e historicidade das condições materiais da vida.

A contingência da linguagem e do sujeito em Richard Rorty

        Começo explorando um pouco a idéia da contingência do sujeito e da linguagem a partir do pensamento de Richard Rorty, parcialmente porque o pensamento dele está sendo usado cada vez mais nas discussões sobre linguagem, identidade e representação4 , mas também porque é uma espécie de caso limite de uma perspectiva que enfatiza a contingência. Para Rorty, a contingência da vida humana vai até o fundo, digamos assim. Primeiro, seguindo a filosofia de linguagem de Donald Davidson5 , ele argumenta que a linguagem não é um médium, nem de representação nem de expressão. Além de outras coisas, isso quer dizer que não faz sentido falar sobre a mediação lingüística. Segundo essa perspectiva, a subjetividade não está construída pela linguagem (Rorty, 1989:10). Além disso, a contingência da linguagem chega a ponto de negar convenções ou regras lingüísticas que são compartilhadas e que operam como elementos constitutivos da construção de conhecimento e de identidades. Nas palavras de Davidson, citadas com aprovação por Rorty:

A linguagem não existe (There is no such thing as language), pelo menos se a linguagem é algo parecido com o que os filósofos acham que é. Portanto, não há nada para ser aprendido ou dominado. Temos que abrir mão da idéia de uma linguagem compartilhada e claramente definida que falantes (language users) dominam e depois aplicam... Deveríamos abrir mão das tentativas de iluminar como comunicamos em termos (by appeal to) de convenções (Rorty, 1992:15) 6

        Se isso quer dizer que a linguagem não tem uma essência [algo bastante criticado pelo Wittgenstein (1974) com sua noção de jogos de linguagem], não há nada aqui com que eu discordaria. No entanto, a concepção de linguagem de Rorty não deixa espaço para considerá-la como um elemento constitutivo do sujeito. Pelo contrário, falar nesses termos seria repetir um vocabulário, para usar um termo de Rorty, que deveria ser condenado ao desuso. Não há espaço para desenvolver uma crítica detalhada dessa concepção de linguagem, mas gostaria de fazer algumas observações.
        Parece-me importante responder a seguinte pergunta: como é possível, a partir da contingência e historicidade do sujeito e da linguagem, pensar em fundamentos socioculturais (não absolutos ou metafísicos) e normativos dos processos discursivos de construção da subjetividade e da reflexão? À “virada lingüística”, que mencionei acima, temos que acrescentar uma “virada discursiva” (Moita Lopes, 2003: 21). Assim, seria possível pensar na linguagem como algo material, parte da realidade que constrange e possibilita nosso pensamento e ação. Muitos autores nos mostram, nas palavras de Hall (ibidem: 109), como “... identidades são construídas dentro e não fora do discurso, [razão por que] nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas”. Fairclough (1989, 1992), por exemplo, mostra que há uma relação “dialética” entre estruturas sociais e discurso, ou seja, o discurso é constituído pelas estruturas sociais e, ao mesmo tempo, constitutivo delas, contribuindo para a reprodução ou mudança social. Por isso, o discurso assume uma importância central nas relações de poder e lutas sociais e políticas: os grupos que controlam as “ordens de discurso” têm um fator poderoso para manter seu poder (Fairclough, 1989: 37). Tais “ordens de discurso” são condições da possibilidade de pensar e de agir do indivíduo, ou seja, “são pré-condições da ação de pessoas individuais: o indivíduo é capaz de agir somente na medida em que existem convenções sociais dentro das quais ele ou ela pode agir” (ibidem: 28). O espaço social é estruturado em vários domínios associados a vários tipos de discurso. Não se trata da existência de ordens de discurso numa relação isomórfica, estável, com ordens sociais, como o modelo platônico de linguagem poderia sugerir. Nas palavras de Fairclough, “ordens de discurso são na verdade a ordem social olhada da perspectiva específica do discurso – em termos de tipos de prática dentro das quais um espaço social é estruturado que, por sua vez, são tipos de discurso” (ibidem: 29). Poder ideológico está exercitado em discurso, contribuindo, nas micro-práticas lingüísticas do cotidiano, para manter relações de poder entre grupos e classes diferenciados.7
        Não é minha intenção discutir as análises de discurso feitas a partir da idéia de discurso como uma prática social, nem como essas análises nos permitem explicar a construção do Self, de relações sociais e da realidade social (Fairclough, 1992), ou ainda a construção discursiva de identidades culturais (Moita Lopes, 2002, 2003). O que quero tentar sugerir é que ordens de discurso, como ordens sociais, podem ser compreendidas como partes de uma ontologia social. Ora, num contexto teórico pós-metafísico, a palavra “ontologia” pode soar como algo metafísico, um retorno a uma concepção essencialista do mundo e do sujeito. Mas nada podia ser mais longe da verdade. Falar em ontologia social é falar nas estruturas, mecanismos e processos - inclusive ordens sociais, ordens de discurso, práticas discursivas etc. - que operam como constrangimentos, bem como facilitadores do pensar e agir de indivíduos. Essas estruturas são materiais e concretas, construídas pela atividade humana em contextos históricos e relações de poder específicas e constitutivas de outras estruturas. Como afirma Fairclough, “os discursos não só refletem ou representam as entidades e relações sociais, elas as constróem ou as “constituem”; discursos diferentes constituem entidades chaves (sejam doenças mentais, cidadania ou letramento) em maneiras diferenciadas e posicionam pessoas em maneiras diferentes como sujeitos sociais...” (Fairclough, 1992: 3-4).
        Esbocei essas idéias para tentar abrir um espaço entre um particularismo puro, por um lado, no qual a instabilidade e indeterminação de sistemas de significação, bem como identidades sociais e posições do sujeito, reduzem tudo a sua singularidade e, por outro lado, um universalismo que não contempla essa instabilidade e indeterminação. O que quero argumentar é que há uma relativa estabilidade desses elementos da ontologia social, determinada pelas relações de poder numa dada sociedade, mas também uma constante mudança deles a partir das interações sociais, muitas vezes lutas, entre subjetividades coletivas, em relações conflituosas e até antagônicas umas com as outras. Como Aronowitz e Girouz argumentam, é necessário evitar “ser preso a teorias particularistas que não podem explicar como diversas relações que constituem sistemas sociais, políticos e globais maiores interelacionam ou se determinam mutuamente e restringem um ao outro” (Aronowitz & Giroux, 1993: 70).
        Além da contingência radical de linguagem, Rorty advoga uma concepção do sujeito igualmente contingente. Segundo essa concepção, não há nenhuma dimensão ontológica do Eu; não há nada mais a dizer sobre o Eu depois de ter descrito os de facto desejos, crenças, esperanças etc. da pessoa. O Eu é simplesmente esse conjunto de estados de consciência. Segundo essa concepção, no passar de uma história de vida pessoal, o indivíduo constrói várias teias de desejos e crenças, cada uma coerente internamente e plausível, pelo menos prima facie. No entanto, nenhuma dessas teias pode ser considerada o centro do Eu, a partir do qual podemos avaliar as outras. Ou seja, há um nivelamento desses ‘quasi-Selves’. O que chamamos a incoerência do Eu, ou até uma crise de identidade, é simplesmente a incompatibilidade entre essas de facto teias de desejos e crenças. Nenhum desses ‘Eus’ deveria ser privilegiado. Nisso, a perspectiva de Rorty é parecida com a do pós-estruturalismo, na insistência no descentramento radical do Self. Não há como avaliar de facto desejos, motivações e ações. Não existe um centro ou núcleo do Self, a partir do qual podemos avaliar nossos desejos, motivações, ações, crenças etc., separando o que é de valor do que é marginal ou superficial. Não há auto-caracterizações, fundamentais no sentido que oferecem um padrão para avaliar outros. Essa possibilidade pressupõe uma ontologia do Eu incompatível com a ênfase na diferença e na contingência.
        Para Rorty, deveríamos “nos ver como sem centro, como uma montagem aleatória de necessidades contingentes e idiossincráticas em vez de uma exemplificação mais ou menos adequada de uma essência humana comum” (Rorty, 1991b: 155). Para ele, “todos os propósitos competem um com o outro em termos iguais, desde nenhum é mais ‘essencialmente humano’ que qualquer outro” (Rorty, 1991a: 110). Portanto, a questão “O que é de fundamental importância?” perde seu sentido. A resposta a perguntas desse tipo dependeria do qual ‘quasi-Eu’ está respondendo.
        Curiosamente, contudo, para Rorty, os de facto desejos, crenças e esperanças de uma pessoa estão sempre abertos a reinterpretação e redescrição. Digo curiosamente porque, para o autor citado, de uma concepção de nós mesmos como “tecidos de contingência” podemos e deveríamos derivar um imperativo de auto-criação: Rorty nos anima a ser mais “irônicos, lúdicos, livres e inventivos em nossas escolhas de auto-descricões (Rorty, 1989: 31). A reflexão, portanto, não seria uma tentativa de fundamentar uma identidade, buscar respostas à pergunta “onde eu me posiciono?” Pelo contrário, seria uma exploração das ‘quasi-pessoas’ que compõem o Eu, uma tentativa de conhecer essas ‘pessoas estranhas’ dentro de nós mesmos, de reconciliar, em conversação, o que nos fragmenta em teias incompatíveis de crenças e desejos.
        De acordo com Smith (1997), Rorty enxerga esse processo como necessário para o indivíduo se tornar “mais rico e mais completo”, para se engajar num processo de autodesenvolvimento, cultivando maneiras mais ricas e completas de formular seus desejos e esperanças, para “nos tornar mais sensíveis e sofisticados que nossos antepassados ou nossos Selves mais jovens”. Segundo Rorty, nós fazemos isso pela aquisição de uma linguagem mais rica de deliberação moral em processos de reinterpretação e redescrição. Mas cabe a pergunta: por que eu deveria me engajar num processo de autodesenvolvimento pela aquisição de um vocabulário mais rico? Qual seria a motivação para ser irônico, lúdico e inventivo em minhas autodescrições? Por que fazer isso em vez de simplesmente me adaptar a uma autodescrição mais cômoda, confortável, menos exigente? A questão que se põe é a de se saber por que razão haveríamos de escolher novas autodescrições, de nos redescrever8 . Se não há fundamentos normativos para a reflexão, por que valorizar essa prática em vez de simplesmente nos adaptar ao mundo como ele é e às autodescrições ou auto-interpretações que nós temos de nós mesmos? O objetivo dessa crítica, obviamente, é de mostrar que a perspectiva de Rorty não é sustentável, porque pressupõe exatamente o que nega: um ponto de vista normativo que fundamenta o imperativo de nos engajar num processo de autodesenvolvimento. Além do mais, não há limites às autodescrições nem às re-descrições do indivíduo, no sentido de descrições ou caracterizações desprezíveis ou antiéticas. Ou, melhor dizendo, a base normativa de possíveis limites está escondida, não admitida na teorização do sujeito e da linguagem.

Os limites da contingência no pensamento de Jürgen Habermas

        No pensamento de Habermas, encontramos uma tentativa de desenvolver uma teoria de linguagem e da subjetividade que nos permite pensar nos fundamentos normativos do pensamento e da ação. Para Habermas, “o interesse humano em autonomia e responsabilidade não é mero capricho, porque pode ser compreendido a priori. O que nos levanta da natureza é a única coisa cuja natureza podemos conhecer: a linguagem. Através de sua natureza autonomia e responsabilidade são apresentados a nós (posited for us)” (Habermas, 1971: 314). Mas não é a linguagem na sua contingência, digamos assim, que interessa para Habermas, mas uma estrutura profunda e universal de linguagem. Essa distinção entre o que é universal e o que é contingente é necessária para evitar a armadilha, do idealismo hermenêutico, de identificar a estrutura de comunicação na linguagem comum (ordinary language) com a sua estrutura normativa. Para evitar a falsa identificação do racional com o real na comunicação (tanto no nível da estrutura de comunicação quanto no dos significados construídos na comunicação), Habermas desenvolve uma distinção entre uma estrutura profunda (e universal) da comunicação (que mostra a base normativa de toda comunicação) e estruturas superficiais (que produzem distorções tanto na comunicação quanto nos significados construídos).
        Aqui vemos a busca para uma concepção da razão que é situada historicamente, mas, ao mesmo tempo, pode se distanciar das contingências históricas para criticá-las. Isto é um dos temas principais da obra de Habermas. Obviamente, pressupõe que nenhuma perspectiva específica e engajada nas contingências históricas pode ser privilegiada com relação a sua racionalidade9 . Ele situa a reflexão nas condições materiais e históricas da vida, no sentido que a linguagem, especificamente os pressupostos pragmáticos da comunicação, que são as condições da possibilidade de falar e agir, fazem parte destas condições materiais e históricas; ou seja, a linguagem, notadamente a comunicação, é o médium pelo qual a sociedade é reproduzida e transformada. O problema, para Habermas, é o historicismo que está implícito na identificação dos fundamentos da reflexão com uma determinada contingência histórica, qualquer que seja.
        Conseqüentemente, Habermas busca um fundamento pragmático-transcendental para a reflexão. Aqui pode ser vista a dimensão ‘Moderna’ do seu pensamento, uma dimensão que é preservada na sua tentativa de superar a filosofia do sujeito. Depois da mudança de paradigma da filosofia do sujeito para a pragmática da comunicação, Habermas tenta articular uma pragmática (no sentido lingüístico) orientada epistemologicamente, que preserva a categoria da razão e busca os fundamentos normativos da reflexão na linguagem.
        Depois da guinada lingüística no seu pensamento, o poder da razão/reflexão somente pode ser entendido se conseguirmos nos livrar da filosofia da consciência (ou do sujeito). Para Habermas, “hoje em dia, o problema da linguagem substituiu o problema da consciência” (1967). Portanto, para “resgatar a experiência esquecida de reflexão” temos que analisar a pragmática da comunicação, ou seja, o uso de linguagem na comunicação. Por isto, ele desenvolveu sua teoria de pragmática universal, que tenta analisar a estrutura interna da fala que é universal e, sobretudo, a condição da possibilidade de uma reflexão crítica e a construção do conhecimento em todos os domínios da vida, incluindo as esferas moral-prática e estética10 .
        Para Habermas, então, a possibilidade de reflexão e de crítica somente pode ser esclarecida se pressupusermos, como condição de sua possibilidade, uma ‘organização interna de fala’ e uma racionalidade processual fundamentada nela:

Porque todas (...) as funções de linguagem (ou seja, a representação de estados de coisas, o assumir de relações interpessoais, e a auto-apresentação expressiva de falantes) são intimamente conectadas com pretensões de validade que podem ser criticadas, práticas comunicativas do cotidiano – e também as culturas de experts que deles emergem – podem desenvolver uma lógica independente (...) que transcende todos os limites locais. Então, as modalidades de ação constituídas pelas visões de mundo operam à luz de uma racionalidade comunicativa que impõe aos participantes uma orientação a pretensões de validade, e nesta maneira desencadeia processos de aprendizagem com efeitos reativos possíveis na compreensão antecedente do mundo. (Habermas, 1998:192).

        Segundo Habermas, os procedimentos argumentativos normativos, que ele identifica como centrais à validação de conhecimento (compreendido como esquemas interpretativos adequados para consenso), são fundamentados e tornados possíveis por uma “organização interna de fala” (Cooke). Com esta estratégia, Habermas acha que a reflexão pode ser resgatada como histórica, parte da realidade social mas, também, capaz de criticá-la. É através da comunicação que nós estabelecemos relações com o mundo. Mas é através da comunicação que nós podemos adotar uma relação reflexiva com o mundo, e é esta relação reflexiva que permite tanto o conhecimento do mundo quanto a (re)construção do mundo, nas suas dimensões social e subjetiva.
        Esta capacidade de distinguir dimensões diferentes da realidade, de adotar uma atitude reflexiva em relação a estas dimensões e distinguir dimensões de validade (ou tipos de pretensão de validade) é fundamentada na linguagem. É também resultado do processo histórico que Weber chamou da racionalização da sociedade. A diferenciação e a racionalização da vida social criaram as condições necessárias para realizar um potencial racional que está, segundo Habermas, sempre contido nos atos comunicativos do cotidiano, mas é, geralmente, contrafatual (ou seja, não realizado), uma “praxis vulnerável do quotidiano”.
        Isto me leva à teoria da pragmática universal. A idéia central aqui é que existem universais pragmáticas na linguagem. Em cada uso de linguagem em atos de fala, nós adotamos relações com os três ‘mundos’, nos quais adotamos posturas diferentes e abrimos ‘dimensões de validade’ diferentes. É a linguagem que faz possível adotar estes posturas diferentes em relação às dimensões da realidade. Esta habilidade é uma pre-condição para uma relação reflexiva com o mundo. Em outras palavras, a capacidade de distinguir dimensões da realidade e de assumir posturas diferentes com cada dimensão pode ser entendida como a habilidade de distinguir dimensões de validade ou tipos de pretensão de validade. Estas relações fazem parte das estruturas linguístico-pragmáticas universais que todo ser humano constrói durante seu desenvolvimento ontogenético, quando domina o sistema de ‘atos de fala’.
        Ora, a ação comunicativa é, para Habermas, como Cooke ressalta, “um modo de comunicação lingüístico (...) no qual participantes levantam e reconhecem (ou rejeitam) reciprocamente vários tipos de pretensão de validade. (...) A noção de pretensão de validade (...) parece implicar uma relação reflexiva com o mundo, porque para reconhecer uma declaração como uma pretensão de validade, o participante na comunicação tem que reconhecer que o outro participante pode ter razões para desafiar a validade da declaração” (1994:12). Assim, Habermas pode afirmar que a capacidade reflexiva do ser humano é maior quando duas ou mais pessoas buscam, de propósito, alcançar voluntariamente um entendimento (Verstandigüng) sobre uma situação, para fins de cooperar um com o outro. A ação comunicativa estabelece uma relação reflexiva com o mundo, mas dialogicamente, no sentido de que a pretensão de validade levantada com cada enunciado tem que ser reconhecida intersubjetivamente. Para isto acontecer, o falante depende da cooperação do outro: “participantes em ação comunicativa podem prosseguir seus objetivos (aims) somente em cooperação um com o outro” (Cooke, 1994:12). Daí, o reconhecimento e, portanto, o ‘resgate’ ou rejeição da pretensão de validade estabelece uma “relação interpessoal de obrigação mútua” entre falante e ouvinte, uma obrigação que “não é moral mas racional” (Cooke, 1994:12-13). Esta consiste, se necessário, em oferecer razões para justificar a pretensão de validade (ou aceitar a pretensão levantada no ato de fala do outro, se não tiver razões boas para rejeitá-la). É neste sentido que a racionalidade é interna à ação comunicativa, com a qual nós reproduzimos e transformamos nosso mundo da vida.
        Além do mais, argumentação tem um lugar privilegiado no pensamento habermasiano: “debate argumentativo sobre pretensões de validade hipotéticas pode ser descrito como a forma reflexiva da ação comunicativa” (Habermas, 1990:323). Em outras palavras, a prática social na qual a opinião se torna conhecimento justificado encontra seus critérios nos procedimentos argumentativos para resgatar ou rejeitar pretensões de validade. Por este motivo, Habermas disse que “o conceito da razão comunicativa, que se refere a um sistema interconectado de pretensões de validade universais, pode ser explicado adequadamente só em termos de uma teoria de argumentação. (...) Argumentos são os meios pelos quais o reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validade de um proponente (proponent), levantada hipoteticamente, pode ser realizado e, portanto, a opinião transformada em conhecimento” (Habermas, 1984:18,25).
        Para Habermas, é o ‘Discurso’, a “forma reflexiva da ação comunicativa”, que contém a chave para a transformação social na direção da emancipação. Discurso, na terminologia habermasiana, é uma forma específica de argumentação. Para evitar uma identificação de qualquer prática com uma prática emancipadora, Habermas quer vincular formas progressivas destas práticas com a razão, entendida em termos processuais e como algo “concretizado na historia, sociedade, corpo, e linguagem” (Habermas, 1990: 172). Para Habermas, temos que ir além de uma concepção da “razão como reduzida à faculdade de entendimento e atividade propositada” (Habermas, 1990: 305), uma visão da razão como localizada no sujeito cognoscente e sujeito que age propositadamente (purposively), para uma concepção da razão localizada em procedimentos argumentativos.
        Mas, afinal de contas, o que é o Eu11 que é capaz de se engajar na “forma reflexiva de ação comunicativa”? Como esse Eu está constituído e como constrói a competência comunicativa necessária para tal engajamento? Aqui encontramos um conceito central ao pensamento de Habermas: o Eu autônomo ou pós-convencional. Se a possibilidade de emancipação depende, para Habermas, da racionalização do mundo de vida que, por sua vez, depende do fortalecimento da ação comunicativa, especificamente em sua “forma reflexiva” ou “discurso”, a questão da formação e da autonomia do Eu se torna fundamental. Desde a década de 70, Habermas vem desenvolvendo uma análise que tenta vincular o desenvolvimento moral do indivíduo com a categoria da identidade do Eu, compreendido como “um Ego não coagido que é idêntico a ele mesmo”, ou seja, “o conceito de um ego autônomo” (ano: página). Segundo o autor citado, o conceito de Identidade do Eu tem um significado descritivo, mas, ao mesmo tempo, tem um significado que aponta na direção de um ideal, de uma organização simbólica de um ego autônomo.
        A organização do Eu é simbólica, segundo Habermas, porque a criança primeiro se integra num “universo simbólico” qualquer, pela apropriação de generalidades simbólicas. Depois, a identidade do indivíduo é assegurada e desenvolvida pela individuação, ou seja, através de uma crescente independência em relação a essas generalizações simbólicas. Sua análise da dialética da socialização e individuação é desenvolvida a partir da teoria de subjetividade de George Herbert Mead.
        A apropriação que Habermas faz da psicologia social de George Herbert Mead é muito complexa, mas tem como motivação principal seu interesse em compreender a ontogênese do Eu reflexivo e o papel constitutivo de comunicação neste processo. Ou seja, tanto individuação quanto socialização são processos de interação social mediados pela linguagem. O sujeito reflexivo e autônomo é constituído socialmente e o arcabouço de nossa análise da subjetividade deveria ser o “paradigma de interação mediada simbolicamente” (Habermas, 1992: 171). A partir da teoria de subjetividade de Mead, Habermas constrói uma compreensão da gênese comunicativa e social do que pode ser chamado o Eu autônomo e reflexivo. Para Mead, como Habermas ressalta, “individuação depende (...) da internalização das agências que monitoram comportamento, que migram, por assim dizer, de fora para dentro” (ibidem: 151-152). Individuação, nessa concepção,

não é visualizada como a auto-realização de um agente (acting subject) independente alcançada em isolamento e liberdade mas como um processo de socialização mediado lingüísticamente e a constituição simultânea de uma história de vida que é consciente de si mesma. A identidade de indivíduos socializados se desenvolve simultaneamente no médium de alcançar entendimento com outros na linguagem e no médium de alcançar um entendimento intrasubjetivo com si mesmo sobre sua história de vida. Individualidade se forma nas relações de reconhecimento intersubjetivo e de auto-entendimento mediada intersubjetivamente (ibidem: 152-153).

        A partir desse insight de Mead, Habermas constrói sua teoria de subjetividade, que resgata a idéia de um Eu autônomo. A tentativa de Habermas é a de superar o conceito de individualidade associado ao Eu como uma fonte espontânea de cognição e ação, conceito esse articulado na filosofia do sujeito, de Descartes a Kant. Esse Eu não é, como a filosofia do sujeito tem mantido, o ponto de partida para uma teoria de conhecimento, por exemplo. Pelo contrário, ele mesmo tem que ser explicado como algo “gerado comunicativamente” (ibidem, 1992:177). Baseado numa sugestão de Wilhelm von Humbolt, Habermas argumenta que, “por um lado, linguagens dão sua própria marca em visões de mundo e formas de vida e portanto dificultam a tradução de uma língua para outra; contudo, elas são direcionadas como raios convergentes em direção à meta de alcançar entendimento universal....[Linguagem] é um mecanismo que distingue e unifica ao mesmo tempo....” (ibidem:163-164).
        Segundo Habermas, Mead foi o primeiro de desenvolver um “modelo intersubjetivo do ego produzido socialmente”, um Self que precisa do reconhecimento do outro porque foi gerado como resposta às exigências do outro. Eu me torno como sou vivendo junto com outros. O ego, que parece algo dado a mim como puramente meu, não pode ser mantido somente pelo meu poder – não me pertence: “o ego sempre retém um núcleo intersubjetivo porque o processo de individuação do qual emerge atravessa a rede de interações mediadas lingüisticamente” (ibidem: 170).
É importante frisar que, para Habermas, “o significado da expressão ‘individualidade’ se refere a autocompreensão de um sujeito capaz de falar e agir, alguém que se apresenta e, se for necessário, se justifica como uma pessoa distintiva e insubstituível, diante de outros participantes em diálogo. Independentemente do quanto é difusa, é essa autocompreensão que fundamenta a identidade do Eu” (ibidem: 168). Além do mais, essa individualidade deve ser explicada em termos da autocompreensão ética de uma pessoa em relação a outro, ou seja, uma conscientização ética de uma pessoa responsável, que está situada dentro de um mundo de vida intersubjetiva e quer ser reconhecida como alguém com uma história de vida mais ou menos estabelecida, contínua e apropriada conscientemente. Em outras palavras, alguém “que sabe, diante dele mesmo e dos outros, quem ele é e quem ele quer ser” (ibidem: 168-170).
        Então, como essa pessoa é constituída? Não é necessário entrar nas complexas e difíceis análises das teorias de subjetividade de Mead e de Habermas. Seria suficiente esboçar alguns aspectos centrais.
  • A gênese da subjetividade se dá pela interação mediada simbolicamente. A subjetividade não é mais compreendida como um espaço interior de representações, espaço esse que se apresenta quando o sujeito se desdobra, como num espelho, sobre sua atividade de representar.
  • Quando a subjetividade é compreendida como um espaço interior de representações, é acessível ao próprio sujeito somente como objeto, e o sujeito adota o papel de observador em relação a ele mesmo. No modelo intersubjetivo, no entanto, o sujeito adota o papel de falante numa relação social com um ouvinte. Dessa perspectiva social, o sujeito se vê e se compreende como o alter ego do outro.
  • Autoconsciência é, então, constituída a partir da relação com o outro. Ou seja, o Eu da autoconsciência é um objeto social. Dessa maneira, o que está constituído é um “me”.12 Na atitude performativa esse “me” se apresenta como algo co-construído na interação social mediada pela linguagem.
  • Conseqüentemente, autoconsciência não é um fenômeno inerente ao sujeito, mas um fenômeno que é gerado comunicativamente. “A consciência que parece centrada no Eu não é algo imediato ou puramente interno. Pelo contrário, autoconsciência se forma de fora para dentro, através da relação com um parceiro em interação mediada simbolicamente. Nesse sentido ela possui um núcleo intersubjetivo” (ibidem: 177-178). Subjetividade é dependente de linguagem. A autoconsciência tem sua origem no encontro com o outro.
  • Entretanto, é importante distinguir entre uma auto-relação originária, que se constrói na comunicação ‘primitiva’, mediada pelos gestos vocais da criança pequena, e a auto-relação refletida, que se constrói na comunicação genuinamente lingüística. Ou seja, nossa individualidade, no sentido de um domínio de representações e de uma autocompreensão ética atribuídos a um indivíduo, somente se constrói na interação social mediada pela comunicação lingüística.
        Essa análise explica, segundo Habermas, a constituição social da autoconsciência, ou seja, a relação epistêmica do Eu com ele mesmo. Contudo, Habermas argumenta que existe outra dimensão, digamos assim, da individualidade, que está formada na interação social mediada pela linguagem: a relação prática do Eu com ele mesmo. Em outras palavras, o agente que se forma nesse processo social é um sujeito que conhece (knowing subject) e um sujeito que age (acting subject). Essa segunda dimensão de agência é o que monitora e controla o comportamento do indivíduo. Esses controles de comportamento, que fazem parte do que pode ser chamada a personalidade do indivíduo, também se constituem na relação interativa entre o Eu e o Outro, na qual “uma nova agência reflexiva está formada através da qual o Eu adota as expectativas comportamentais do Outro” (ibidem: 179). O principal mecanismo aqui é o de adotar os papéis sociais do outro (role-taking). Nesse processo, um segundo “me” está constituído, mas, em vez de ser o lugar de autoconsciência, esse “me” é a agência de autocontrole. Ou seja, auto-reflexão, que tem como tarefa mobilizar motivos para ação e internamente controlar o comportamento do indivíduo. Nesse caso, o Eu adota as expectativas normativas do Outro: normas sociais são ancoradas no sujeito através de um processo de internalização de controles sociais.
        Segundo Mead, esse “me” se concebe como o “outro generalizado” (generalized other), ou seja,

as expectativas de comportamento do meio social do sujeito, digamos assim, migram de dentro da pessoa. A relação prática do Eu com ele mesmo é constituída (made possible) por um “me” que coloca limites, da perspectiva do “we” social, à impulsividade e criatividade de um “I” resistente e produtivo. Dessa perspectiva, o “I” parece, num lado, como a pressão de impulsos naturais e pré-sociais e, no outro lado, como o ímpeto para a transformação inovativa de uma maneira de ver... uma linguagem renovada e revolucionária que nos permite ver o mundo com olhos novos (ibidem: 179-180).

        O “me” de Mead pode ser considerado uma consciência moral convencional, uma força conservadora, dependente das formas de vida e instituições praticadas e reconhecidas numa determinada sociedade. No entanto, esse Self constituído convencionalmente é uma pré-condição para um “I”, ou seja, um aspecto do Self que é não convencional, um Self que pode opor o “me” convencional.
        Mas o “I”, essa fonte de inovações capazes de romper e renovar os controles convencionais, que resiste às expectativas consideradas legítimas numa determinada sociedade, na teoria de Mead, representa elementos da personalidade que podem ser considerados parte da subconsciência. Ou seja, a tensão entre o “me” e o “I “, no estágio da gênese do indivíduo que pode ser chamado convencional, é resolvida pela supressão ou opressão do “I” pelo “me”. Ou seja, a identidade convencional vence os aspectos não convencionais do Self. Mas, sendo elementos subconscientes deste último, o conceito de “I” de Mead não pode ser o Self como sujeito de ação responsável (subject of accountable action).
        Para Habermas, a identidade convencional, representada pelo “me” da teoria de Mead, é, na melhor das hipóteses, um substituto para o Self verdadeiro, ‘autêntico’. Por isso, Habermas desenvolve o conceito da identidade pós-convencional, um Eu capaz de se distanciar das práticas e instituições consideradas legítimas numa determinada sociedade para criticá-las e transformá-las. Mas esse Eu, como qualquer outro, tem que ser constituído intersubjetivamente, através de uma relação com outros numa comunidade. É nessa relação que o Self se constitui sempre. Para o indivíduo ser capaz de realizar sua identidade verdadeira, não pode se desvincular de uma comunidade. Então, como a identidade pós-convencional pode se desenvolver, se a internalização do “outro generalizado” numa comunidade qualquer resulta na constituição de uma identidade convencional?
        A resposta que Habermas dá a esse dilema é muito problemática, na minha opinião. Basicamente, ele diz que o “I”, a fonte do potencial crítico do Self, digamos assim, projeta um novo contexto intersubjetivo, possibilitando um novo “me” que reflete as normas dessa comunidade projetada13 . Qual é essa comunidade? É uma comunidade ‘universal’ composta de todos os alter egos, ou outros, possíveis. Na sua relação com essa ‘comunidade universal’ projetada, o Self constrói uma identidade pós-convencional onde o “me” convencional está substituído com um “me” pós-convencional.
        É importante perceber que, para Habermas, o Self pós-convencional é uma construção social como qualquer outro Self. Não é a propriedade de uma subjetividade isolada; é um Self que depende do reconhecimento de outros, tanto quanto qualquer Self. Esse Self recorre à comunidade universal em duas dimensões: a moral e a ética. No discurso moral, o indivíduo busca um consenso com a comunidade universal com relação às normas justificáveis (binding norms), ou seja, pretensões de validade normativas que sobreviveriam um processo argumentativo (discurso prático) conduzido com os membros de tal comunidade. Tais normas têm validade universal, segundo Habermas. É isso que se torna possível a autodeterminação do Self.
        O discurso ético, a outra dimensão do Self com a comunidade universal, está relacionado com identidades culturais e individuais. Ou seja, minha identidade única como indivíduo insubstituível e minha identidade como membro de um grupo social qualquer também dependem dessa comunidade maior. Nesse caso, o que o Eu busca não é entendimento mútuo, mas reconhecimento como o indivíduo que ele é e quer ser. É isso que se torna possível à auto-realização do Self. Ou seja, ser autêntico, tanto na minha identidade cultural e pessoal, quanto na minha identidade moral e política como membro de uma comunidade maior, depende do reconhecimento dos outros. Individuação, no sentido dado a esse termo por Habermas, depende de uma identidade pós-convencional que, por sua vez, requer que a pessoa supere o estágio convencional de socialização para se distanciar e criticar as normas convencionais de sua sociedade.
        Assim, a racionalidade do sujeito é resgatada tanto das tendências do individualismo metafísico da modernidade quanto do contextualismo do pós-modernismo. A teoria de subjetividade de Habermas é uma tentativa de teorizar uma agência que não é “intimamente unida com o que já existe... as formas de vida e as instituições que são praticadas e reconhecidas numa sociedade específica” (Habermas, 1992: 180). O Eu pós-convencional é um “iniciador de ação que é atribuída somente a ele” (ibidem), ou seja, um Eu autônomo. Mas a constituição desse Eu autônomo é social. Como Habermas diz:

Somente na medida em que nós crescemos dentro desse contexto social (grow into these social surroundings) é possível que nós constituímos como atores individuais responsáveis; na internalização de controles sociais, desenvolvemos para nos mesmos, separados dos outros (in our own right), a capacidade ou de seguir ou de violar as expectativas que são consideradas legítimas (Habermas, 1992: 181).

        Individuação, nesse sentido, não é a mesma coisa que a diferenciação social causada pelos processos de modernização. Habermas argumenta que a crescente fragmentação das sociedades contemporâneas sobrecarrega identidades convencionais com exigências conflituosas, o que pode resultar na desintegração dessas identidades. Mas isso é tanto um fenômeno de emancipação quanto uma perda de identidade. Contudo, seu potencial emancipatório pode ser realizado somente na medida em que indivíduos são capazes de construir estruturas de identidade pós-convencional. E tal possibilidade requer não um desengajamento de uma comunidade, mas uma ‘integração projetada’ numa comunidade maior.
        Obviamente, essa análise da individuação é intimamente vinculada com a teoria de pragmática universal que vimos anteriormente. Tanto a “forma reflexiva da ação comunicativa”, necessária para avaliar pretensões de validade, quanto a possibilidade de construir uma identidade pós-convencional requerem a suposição ideal de uma comunidade universal de discurso. Como Habermas diz:

O momento transcendente de validade universal destrói toda a regionalização; o momento obrigatório de pretensões de validade aceites aqui e agora torna-nos suportes de uma praxis diária ligada ao contexto. (...) A validade exigida para proposições e normas transcende os espaços e os tempos, mas a exigência é levantada aqui e agora em certos contextos e aceite ou recusada com conseqüências fatuais. K-O Apel fala de forma sugestiva do cruzamento da comunidade real com a comunidade ideal de comunicação (Habermas, 1990:322-333).

        Mas é exatamente essa distinção entre uma comunidade real e uma comunidade ideal de comunicação o aspecto mais problemático. Acabamos de ver, na sua teoria de subjetividade, como Habermas utiliza uma distinção parecida com essa para resgatar a noção de um Eu reflexivo que não se fundamenta em pressupostos metafísicos nem em contextos sócio-históricos particulares.
        Habermas considera as ‘idealizações fortes’, que ele reconstrói na sua pragmática universal e teoria de subjetividade, essenciais para compreender o impulso crítico contido em processos de comunicação. Somente uma pragmática formal ou universal pode reconstruir o núcleo universal que é compartilhado por todas as linguagens naturais: um núcleo que não é dependente das visões de mundo e formas de vida concretas.

As visões de mundo reguladas gramaticalmente e as formas de vida aparecem somente no plural; contudo (...) correspondem uma à outra nas suas estruturas mais formais e gerais. (...) Porque todas as visões de mundo têm que se reproduzir no médium de ação orientada ao entendimento mútuo, o caráter geral da racionalidade comunicativa se afirma na multiplicidade de formas de vida concretas (Habermas, 1998: 190).

        Mas poderia-se perguntar se isso é um retorno a uma concepção de razão pura, desprendida das condições materiais e históricas da vida. Habermas reconhece a força desta crítica, quando ele comenta que “não é tão simples responder a suspeita que com o conceito de ação orientada às pretensões de validade um idealismo de uma razão pura e não situada entra de novo, e as dicotomias entre os domínios do transcendental e do empírico renascem de outra forma” (Habermas, 1990: 322). No entanto, ele responde enfatizando que não tem “uma razão pura que pode se vestir numa roupa lingüística (....) Razão é, por sua natureza, encarnada nos contextos da ação comunicativa e nas estruturas do mundo da vida” (ibidem).
        Contudo, precisam ser questionadas exatamente a possibilidade de transcender os limites da multiplicidade de formas de vida concretas e as idealizações fortes que a sustentam. Por exemplo, pode-se perguntar, parafraseando Taylor, se isto é uma leitura dos processos ideais de argumentação para dentro da constituição de comunicação como condições de sua possibilidade. Ora, a questão central é se isto equivale a uma tentativa de resgatar a idéia de uma razão desprendida e de um sujeito desprendido, sem recorrer aos fundamentos metafísicos geralmente invocados para esse fim.
        Terminarei minha exposição do pensamento de Habermas sinalizando um ponto fraco na teoria dele relacionado à idéia de que a ação comunicativa, com seu mecanismo de alcançar entendimento na argumentação, seja central nos processos de socialização e de aprendizagem. Como Cooke tem argumentado,

A visão de Habermas não leva em consideração suficientemente a insuficiência de uma socialização comunicativa na qual somente o mecanismo de alcançar entendimento pela argumentação (...) é disponível. (...) Ação comunicativa não pode, ela mesma, gerar os recursos (potentials) semânticos nos quais o bem estar humano depende. (...) Aumentando refletividade (no sentido de abrir cada vez mais a avaliação crítica de pretensões de validade) pode levar a uma erosão progressiva das interpretações tradicionais e práticas que tem sido os recursos principais nas tentativas das pessoas de se compreender na sua relação com a sociedade e a história. Não fica óbvio que o conhecimento especializado gerado nas chamadas culturas de experts de ciência, direito e moralidade, e arte pode fornecer um substituto para os recursos semânticos gerados pela tradição (1994: 163).

        Ou seja, a reflexão, no modelo habermasiano, pode desmontar as condições culturais necessárias para a construção da identidade cultural de um grupo e, portanto, a autorealização dos indivíduos que pertencem a esse grupo. Os recursos semânticos necessários para o bem-estar humano, gerados por tradições culturais, não podem ser reproduzidos e produzidos por processos reflexivos baseados somente no modelo ideal de argumentação. Isto equivale a um modelo de emancipação (como autodeterminação) sem felicidade e satisfação. Assim, o projeto modernista de emancipação pela razão fica comprometido.

Hermenêutica forte, subjetividade e práticas reflexivas no pensamento de Charles Taylor

        Charles Taylor oferece concepções do sujeito, da linguagem e da racionalidade que recorrem à hermenêutica filosófica de Heidegger e Gadamer, à filosofia do segundo Wittgenstein, bem como a outros pensadores que “lutam para resgatar uma compreensão do agente como engajado, embutido na cultura, uma forma de vida, um ‘mundo’ de envolvimentos, no final compreender o agente como incorporado”(Taylor, 1997:61-62). Esta concepção do agente é o ponto de partida para uma antropologia filosófica, uma ontologia e uma análise da racionalidade como processo de articulação e constituição de experiência, que é sempre e necessariamente embutido em formas de vida concretas.
        Primeiro, esboçarei alguns pontos centrais da antropologia filosófica de Taylor. O que define o ser humano é sua capacidade de auto-interpretação. Somos animais auto-interpretativos (Self-interpreting animals). Isso quer dizer, grosso modo, que “nossa interpretação de nós mesmos e de nossa experiência é constitutiva do que somos e, portanto, não pode ser considerada meramente como uma visão da realidade, separável da realidade, nem um epifenômeno, que pode ser ignorado em nossa compreensão da realidade” (Taylor1985a: 47).
        Em outras palavras, nós nos fazemos a partir de auto-interpretações. Mas há limites a essas auto-interpretações, relacionados a uma espécie de ideal que se expressa na forma de “avaliações fortes”. Não é um fato contingente sobre seres humanos que são seres para quem certas questões de valores têm tanto importância. Além disso, já recebemos pelo menos respostas parciais a essas perguntas ao longo da história (Taylor, 1985a: 3). A identidade de uma pessoa depende dessas auto-interpretações, que expressam ou desvendam o que é importante para nós, o que é de valor, o que importa. Nós fazemos discriminações qualitativas, o que Taylor chama de “avaliações fortes”, e essas avaliações constituem nossa identidade, nos situa num espaço que é social, ético e estético. Como Taylor diz: “o que é distintivamente humano é o poder de avaliar nossos desejos, de considerar alguns desejáveis e outros não desejáveis (....) [Esse] poder de auto-avaliação (...) é uma característica do modo de agência que reconhecemos como humana” (1998a: 15-16).
        De acordo com Smith:

Para Taylor, a identidade de uma pessoa é inteligível em virtude da capacidade de fazer distinções [qualitativas], e o ser de uma pessoa importa, é uma vida boa em vez de uma ‘mera’ vida qualquer (‘mere’ life), na medida em que ela pode ser interpretada como atualmente ou potencialmente de valor (worthwhile), significante ou realizada (...) [e] o que faz com que a vida de uma pessoa ou um grupo seja de valor, significante e realizada, é o que define uma vida boa para aquele indivíduo ou grupo (1997: 37).

        É importante perceber que, para Taylor, o que é não contingente é o fato de que temos que nos avaliar dessa maneira; isso não é algo que poderia ser diferente. Pelo contrário, para um ser humano isso é uma necessidade, é uma característica definidora do seu modo de ser. “Somos Selves” disse Taylor, “somente se certos assuntos importam para nós” (Taylor, 1989: 34). Ora, “avaliações fortes” não são uma questão de preferências privadas: satisfação dos de facto desejos não é uma medida de “avaliações fortes”. Pelo contrário, a medida é um padrão independente de valor que pode servir para questionar nossos de facto desejos ou preferências. Ou seja, esse padrão não é contingente no sentido forte dessa palavra; existe independentemente do eu como um indivíduo. Também, e isso é crucial para Taylor, essas avaliações fortes fazem parte de nossa identidade, já que nossa identidade é constituída a partir delas.14
        Um aspecto importante desta noção de pessoa é que saber a resposta para a pergunta “Quem sou eu?” é compreender o que é importante para nós. “Conhecer quem sou eu é uma espécie de conhecer onde eu estou localizado” (Taylor), de me situar num espaço social que é, ao mesmo tempo, um espaço ético, como argumenta Taylor. No processo de socialização numa comunidade qualquer, nós adquirimos e construímos compromissos, identificações, caracterizações, valores etc., que operam como um ‘horizonte’ ou pano de fundo dentro do qual nós tentamos determinar o que é bom, ou de valor, ou deveria ser feito etc. Em sumo, um espaço ético no qual eu sou capaz de me posicionar em relação à pergunta “Como deveria viver?”. Se perdêssemos esse compromisso, essa identificação com determinados valores ou tradições etc., perderíamos o significado das coisas para nós. Seríamos desorientados, sem um arcabouço ou horizonte dentro do qual as coisas podem ter um significado estável. Entraríamos numa crise de identidade.
        Assim temos um elo entre identidade e um tipo de orientação: ser guiado num espaço ético, um espaço no qual surgem questões sobre o que é bem ou mal, o que vale a pena fazer ou não, o que tem significado e importância para o indivíduo e o que é trivial, sem relevância. Claro, esse espaço não é o mesmo para todo mundo. Também, não é construído individualmente! É construído e reproduzido sócio-culturalmente.

Nós nos tornamos agentes humanos plenos, capazes de compreender nós mesmos e, portanto, de definir nossa identidade, através da aquisição de linguagens humanas ricas de expressão (...) linguagem no sentido lato, cobrindo não somente as palavras que falamos, mas também outras modalidades de expressão pelas quais nós nos definimos, incluindo as ‘linguagens’ da arte, do gesto, de amor, e outras. Mas aprendemos estas modalidades de expressão através de intercâmbio com outros. Pessoas não adquirem as linguagens necessárias para auto definição isoladas umas das outras. Pelo contrário, estamos apresentados a elas através da interação com outros que são importantes para nós – que G.H.Mead chamou de ‘outros significativos’. A gênese da mente humana não é monológica, não é algo que cada indivíduo realiza sozinho, mas dialógico (Taylor, 1997: 230).

        Se esta visão da agência humana é correta, podemos ver a importância das tradições, valores e práticas de uma cultura para nossa compreensão de nós mesmos como seres humanos. Se nós “definimos nossa identidade sempre em diálogo com, e às vezes na luta contra as coisas que os outros significativos querem ver em nós” (Taylor, ibidem), a gênese e a manutenção da identidade requerem interação social com a comunidade de outros significativos: “Descobrindo minha própria identidade não quer dizer que o faço sozinho, isoladamente, mas que a negócio através de diálogo...com outros” (Taylor, ibidem: 231).
        Uma conseqüência importante desta visão do Self  é que o sujeito não pode ser um Self desprendido, do tipo que esbocei no início desse artigo. Outra conseqüência igualmente importante é que identidade e ética são interligados necessariamente. Ser um agente humano, uma pessoa, um Self  é ser situado num espaço social e ético. Além do mais, as distinções qualitativas que nos definem não são coisas que podemos escolher à vontade: fazem parte de uma ontologia ‘moral’, uma condição da possibilidade de agência humana. Não seria inteligível uma vida vivida sem um arcabouço de avaliações fortes. Em outras palavras, uma vida vivida com tal arcabouço não é algo contingente, mas necessário à vida humana.
        Além do mais, esta noção de identidade explica a demanda de ser reconhecido, característica da política contemporânea em sociedades pluralistas. De acordo com esta perspectiva, reconhecimento é uma necessidade humana básica, sem a qual a idéia de identidade – “a compreensão que uma pessoa tem do que é” – se torna problemática.

Nossa identidade é formada, parcialmente, pelo reconhecimento ou sua ausência, muitas vezes pelo falso reconhecimento (misrecognition) dos outros, e então uma pessoa ou um grupo de pessoas sofrem danos reais, distorção real, se o povo ou sociedade em volta deles espelha um retrato que os limita ou os rebaixa ou é desprezível. Não reconhecimento ou falso reconhecimento (misrecognition) podem fazer mal a uma pessoa ou grupo, ser uma forma de opressão, o aprisionamento em uma maneira de ser falsa, distorcida e reduzida (Taylor, ibidem: 225).

        É importante perceber que, até esse ponto do argumento, Taylor somente estabelece a impossibilidade existencial de viver sem uma orientação ao bem, e também que a aplicabilidade do conceito de avaliação forte é uma característica não contingente do ser humano15 . Como afirma Smith:

Esse argumento elimina a contingência somente num nível muito geral. Mostra que há uma relação não-contingente entre auto-interpretação e uma orientação ao bem (the good), mas não diz nada sobre o conteúdo do bem. O fato que um animal auto-interpretativo é orientado a um pano de fundo de avaliações fortes numa maneira não contingente, não contradiz a contingência de como uma pessoa é orientada assim. Pelo contrário, a hermenêutica de Taylor pressupõe, crucialmente, a ausência de um fundamento metafísico que eliminaria qualquer contingência do Self (1997: 40).

        Em outras palavras, horizontes de distinções qualitativas não são contingentes, mas qual horizonte é dado depende das contingências da história. A hermenêutica forte insiste, também, na diversidade desses horizontes de descrições qualitativas. Não há somente uma maneira de viver que é boa, que vale a pena, que pode ser avaliada positivamente. Incorpora, como elemento essencial, a pluralidade de valores e formas de vida.
        Uma outra característica crucial do ser humano, nesta visão, é determinada pelos poderes de reflexividade. Mas não se refere à concepção pós-cartesiana de reflexividade monológica. Esta visão adota a perspectiva do sujeito desengajado e o reifica numa visão de sujeitos humanos como sujeitos de representações, definidos independentemente de encarnação e contexto social:

Isto quer dizer que, facilmente, nos vemos o agente humano como, na primeira instancia, um sujeito de representações: representações, primeiro, sobre o mundo externo; e segundo, retratos/imagens de fins desejados ou temidos. Este sujeito é monológico. Está em contato com um mundo ‘externo’, inclusive outros agentes, os objetos com os quais eles lidam, seus corpos, mas este contato está através das representações que tem ‘por dentro’. O sujeito é, em primeira instância, um espaço ‘interior’, uma ‘mente’, para usar terminologia antiga, ou um mecanismo capaz de processar representações, se nós seguirmos o modelo inspirado no computador que está em moda hoje em dia. O corpo, outras pessoas podem formar os conteúdos das minhas representações. Mas o que ‘eu’ sou, como um ser capaz de ter tais representações, o espaço interior em si mesmo, é definido independentemente do corpo e do outro. É um centro de consciência monológica (Taylor, 1991b: 307).

        Essa crítica da noção clássica de ‘representação’ nos lembra tanto a crítica ‘pós-estruturalista’ quanto a crítica habermasiana. Mas, ao contrário do que estou chamando de perspectiva ‘pós-estruturalista’, Taylor insiste na possibilidade de expressões ‘melhores’, mais apropriadas. Linguagem é o que faz possível a constituição e expressão do espaço ético, e racionalidade é (re)definida como articulação: “de esforçar-se pela racionalidade é estar engajado na articulação, na busca de formulações apropriadas” (Taylor, 1985b: 137). Essencialmente, na teoria tayloriana, articulação não envolve uma representação melhor da realidade, tampouco um processo argumentativo que pressupõe uma comunidade ideal de comunicação. Pelo contrário, é um esforço de situar melhor as coisas com relação à sua importância para nós. E este significado está construído socioculturalmente. A linguagem, então, tem a função de nos levar a uma compreensão nova. É essa dimensão expressiva da linguagem que, para Taylor, é central à capacidade humana que chamamos ‘racionalidade’. Segundo Taylor, somos ‘seres reflexivos’, no sentido de sermos capazes de uma articulação reflexiva de um ‘insight  mais profundo’ do bem humano.
        Para Taylor, no entanto, podemos preservar uma concepção de verdade. Podemos, em outras palavras, decidir qual maneira de viver e sentir “é mais esclarecedora e fiel à realidade. (...) Reflexão não é meramente uma questão (...) de registrar a conclusão que A é mais atraente para mim (...) que B. Pelo contrário, a necessidade (desirability ) de A em relação a B é algo eu posso articular se estou refletindo como um avaliador forte (strong avaluater). Tenho um vocabulário de valor” (Taylor, 1985a: 22-24). O papel da reflexão, então, é de articular o valor das coisas para nós. Mas isso não exige desengajamento de descrições qualitativas ou os recursos semânticos de nossa linguagem que usamos para articular nossas avaliações fortes. Pelo contrário, são esses recursos que utilizamos para nos tornar mais articulados sobre nossas preferências e nossas vidas. Avaliações fortes, e as descrições qualitativas que usamos para expressá-las, são condições de articulação. A aquisição de linguagens de avaliação forte, então, é de maior importância para nossa capacidade de articular nossa experiência. Além do mais, essas linguagens não têm que ser exclusivamente éticas, podem ser também estéticas e de outros tipos (Taylor, 1985a: 24).
        Na medida em que temos essa capacidade de articular nossa experiência, somos capazes de “examinar os possíveis modos diferentes de ser um agente. (...) Uma reflexão sobre o tipo de ser que somos nos leva ao centro de nossa existência como agentes. Avaliação forte não é somente uma condição para ser clara sobre nossas preferências, mas também sobre a qualidade de vida, o tipo de ser que somos e queremos ser”. (ibidem: 26). Mas, obviamente, onde há articulação há, também, a possibilidade de uma pluralidade de visões de mundo e maneiras de ser. Não há como escapar dessa pluralidade invocando uma comunidade ideal de comunicação. Mas como, então, resolver a questão de qual interpretação ou auto-interpretação é mais verdadeira, mais autêntica, mais livre de ilusão e quais envolvem uma distorção dos significados que as coisas têm para um indivíduo ou um grupo?
        Aqui, obviamente, não há nenhum ponto arquimediano ou metafísico de onde nós podemos dar uma resposta a essa pergunta. A tentativa de articular nossa experiência em palavras e imagens não deixa o ‘objeto’ de reflexão intocado. Dar uma certa avaliação é moldar nosso senso do que é importante. Aceitar uma nova interpretação é modificar nossas auto-descrições e, portanto, modificar nossa experiência. Mas como mudanças em descrições e experiência podem acontecer? A relação constitutiva entre descrições e experiência quer dizer que tanto uma nova descrição pode alterar nossa experiência quanto a natureza de nossa experiência pode alterar nossas descrições. Determinadas circunstâncias nos levam a refletir, a tentar articular nossa experiência e/ou as avaliações fortes que formam o pano de fundo de nossas decisões e ações. Como Taylor diz:

Mudança pode acontecer em duas maneiras diferentes. Em algumas circunstâncias estamos levados a refletir, sozinhos ou em intercâmbio com outros, e podemos às vezes alcançar uma nova maneira de nos ver e, portanto, uma mudança em nossas experiências. Mas, mais fundamentalmente, determinadas descrições de experiência são inaceitáveis ou incompreensíveis para algumas pessoas por causa da natureza de sua experiência (Taylor, 1985a: 37).

        Avaliações fortes, então, são o horizonte ou fundamento de nossa identidade e nossa experiência do mundo. E tanto as avaliações quanto nossa identidade e experiência podem ser modificadas a partir da reflexão, entendida como articulação. Nenhuma formulação ou interpretação do que somos ou deveríamos viver é imune a uma revisão. Todas podem ser desafiadas. Mas isso não quer dizer que vale tudo. Nossas interpretações são ancoradas, digamos assim, em nossas experiências. Nesse sentido, a realidade impõe limites às interpretações possíveis. Mas essa realidade é, ela mesma, sujeita a modificação a partir de nossas tentativas de articular nossa experiência16 .
        Contudo, não há nenhuma metalinguagem disponível que podemos usar para avaliar interpretações e auto-interpretações em conflito. O que temos são nossas linguagens naturais e seus recursos semânticos. Talvez a única medida que temos para decidir a validade intersubjetiva de nossas interpretações e auto-interpretações seja o que Gadamer chamou de “fusão de horizontes”, alcançada numa postura aberta, onde somos preparados para aceitar uma mudança radical em nossa maneira de ver o mundo e nós mesmos. O critério ou padrão de validade não transcende nossa posição social e ética concreta, mas, ao mesmo tempo, não é arbitrário. Horizontes de significados abrem um espaço que é habitado pela razão, onde há uma verdade em relação a nossas avaliações fortes, verdade essa que está sendo articulada nas instituições e cultura da modernidade, mesmo se parcialmente sujeita a distorções17 .
        Claro, tal afirmação é muita polêmica, na medida em que tenta construir uma concepção substantiva de razão prática que fica entre a razão comunicativa de Habermas - uma concepção processual e formal da racionalidade, que insiste que a validade exigida para proposições e normas transcende os espaços e os tempos contingentes -, e um historicismo radical, que nega a idéia que a prática é sujeita à arbitragem da razão. Para a primeira, o princípio da razão só pode ser compreendido como algo independente de formas de vida e concepções do bem concretas. Para o último, a razão simplesmente é o que a tradição justifica. A hermenêutica forte tenta guiar entre a Cila de uma razão prática abstraída dos horizontes concretos de valor e significado, e o Caríbdis de uma razão prática esgotada pela tradição e suas contingências. Em outras palavras, avança a pretensão de que uma forma narrativa da razão prática pode estimular mudanças em interpretações e concepções da identidade humana, que constituem ganhos epistêmicos, sem perder contato com sua substância ou faticidade histórica.
        Mas o que seria uma forma narrativa da razão prática?18 Essa concepção da razão se fundamenta na idéia de que há insights que somente podem ser expressos em uma forma narrativa. Fundamenta-se nos pressupostos de que um senso de identidade requer uma orientação num espaço e tempo moral. Mudanças em identidade, então, são articuláveis somente numa forma narrativa. A condição temporal da agência humana quer dizer que é condicionada não somente pela orientação ao bem humano, mas também significa a possibilidade de crescimento e declínio moral, no sentido de valores mais ou menos válidos. Uma teoria de razão prática tem que dar uma resposta à pergunta: como é possível uma transição racional de uma identidade a uma outra? Primeiro, a razão prática é vinculada a mudanças em identidade, portanto está enraizada em fontes da motivação humana. Segundo, usando o modelo de narrativa em vez de cálculo, a deliberação prática mantém um vínculo com a historicidade e finitude do Self.
        Além do mais, a forma narrativa da racionalidade mantém seu vínculo com a linguagem: não uma estrutura interna de fala, que é universal, mas os recursos semânticos, sintáticos e pragmáticos que usamos para articular algo, para dizer, claramente, o significado de algo para nós. Taylor diz: “temos uma compreensão racional (rational grasp) de algo quando podemos articulá-lo, quer dizer, distinguir e mostrar as características da coisa numa ordem clara (perspicuous order). Isso acontece quando tentamos formular coisas em linguagem, que é a razão pela qual o vocabulário filosófico grego marcou essa conexão interna entre fala e razão” (Taylor, 1985b: 137). Mas esse processo de articulação nunca é solitário. Através da linguagem, colocamos algo no espaço público, num espaço entre interlocutores, e o fato de que está em espaço público quer dizer que não é mais um assunto para mim, ou para você, ou para nós separadamente, mas se torna algo para nós juntos” (Taylor, 1985b:259). Como um defensor da hermenêutica forte de Taylor diz:

Se uma determinada deliberação prática é correta ou não é determinada pela superioridade comparativa das posições interpretativas em cada lado da mudança. Ser mais racional (favoured by reason), portanto, não é ser julgado positivamente segundo um critério fixo, que é aplicável a qualquer deliberação prática independentemente do contexto ou horizonte de auto-interpretação. Como Taylor o descreve, o raciocínio prático funciona bem quando mostra com perspicácia ganhos ou perdas epistêmicos em casos concretos e específicos. Maneiras típicas de alcançar essa meta é através da identificação ou resolução de uma contradição na interpretação original, apontando para uma confusão na qual a interpretação se fundamenta, ou pelo reconhecimento de um fator que não foi incluído. ‘O nervo de uma prova racional’ (...) consiste em mostrar que uma transição específica é uma que reduz o erro. O argumento se torna em volta de interpretações rivais de transições possíveis (Smith, 1997: 61-62)

        Colocada assim, a lógica do raciocínio prático parece a mesma do conhecimento científico, pelo menos na forma como essa lógica está analisada pela chamada filosofia pós-empirista da ciência (Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend et al.). Segundo Smith (1997: 62-63), se analisamos o crescimento do conhecimento científico no modelo de uma dialética de tradições rivais, ou seja, de como essas tradições desdobram-se historicamente, podemos desarmar uma possível objeção à aceitabilidade do modelo narrativo de razão prática. Ou seja, podemos argumentar que transições na ciência e na deliberação prática têm o mesmo núcleo estrutural.
        O problema com essa sugestão, no entanto, é que a redução de erro, na ciência, vale para todas as possíveis interpretações de um determinado fenômeno. Ou seja, a validade do conhecimento é transitiva, no sentido lógico. Isso não quer dizer, claro, que é infalível. Qualquer interpretação é vulnerável, no sentido de que pode ser substituída por uma interpretação melhor. Contrária a isso, a forma do argumento que representa o desafio da razão prática, segundo a hermenêutica forte, é diferente. É uma forma de raciocínio que explica uma mudança ética, ou seja, uma mudança na localização de alguém no espaço ético. E isso poderia ser considerado uma mudança em auto-interpretação que, por sua vez, constitui-se em uma mudança do Self. Portanto, o que conta como um ganho ou uma perda depende da situação concreta, e não pode ser transferido a outras situações. Em outras palavras, é uma maneira de avaliar mudanças vividas da perspectiva moral ou ética de uma pessoa.
        Obviamente, um processo de deliberação desse tipo não garante uma resposta apropriada à dinâmica de conflito, crise e resolução, que determina o desenvolvimento da identidade do indivíduo concreto tanto quanto tradições e culturas reais. Os recursos da razão prática podem se esgotar sem resolução. Mas o fato de que o processo é necessariamente dialógico, ou seja, o processo não está inteiramente sob o controle do indivíduo, impede a possibilidade de leituras arbitrárias de uma situação. Interpretações, inclusive auto-interpretações, podem ser desafiadas pelo outro no diálogo. Não construímos ‘re-leituras’ de nós mesmos em isolamento dos outros. Pelo contrário, como já foi dito, construímos nossas identidades na interação social com o outro. Mudanças nas auto-interpretações de indivíduos, que são transformações destes através de novas leituras do mundo e deles mesmos, podem provocar mudanças na vida ética (Sittlichkeit) de um grupo ou uma sociedade19 .
        Sociedades contemporâneas são marcadas por uma pluralidade de tradições e diversas maneiras de identificação cultural. Ou seja, como sites da formação de identidades, não são homogêneos. Mas não é possível transcender a faticidade dessas tradições e identificações. Vimos que a tentativa de fazer isso no pensamento de Habermas é muito problemática. Mas podemos recuperar horizontes perdidos, de possibilidades escondidas e de fontes normativas ocultas. Ou seja, podemos articular ‘bens’ que são implícitos, que estão enterrados, marginalizados e, portanto, desafiar a validade das práticas constitutivas da cultura predominante20 .
        Mas não é possível escapar do ‘circulo hermenêutico’ no qual toda explicação é presa. Como Taylor diz, “para apreciar uma boa explicação, têm que concordar com o que é que faz bom senso; o que faz bom senso é uma função das leituras de alguém; e essas por sua vez são baseadas nos tipos de senso que se compreende”. Mas, apesar da certeza de que não podemos escapar desse círculo hermenêutico, ele está em constante movimento, modificando tanto as redes de significado, que formam a base de toda leitura do mundo, quanto as leituras de indivíduos e grupos. Nada garante que esse processo vai do pior para o melhor, mas o fato de que a razão prática está vinculada a mudanças de identidade, na direção de uma leitura superior, mostra-se na capacidade de indivíduos e culturas resolver crises de identidade e de tradições a partir de novas leituras.

A formação do sujeito e práticas reflexivas

        O sujeito desengajado da modernidade necessita de uma formação com foco em práticas reflexivas que desenvolvem sua capacidade de auto-reflexão, no sentido de um raciocínio claro, bem como o autocontrole próprio, que, por sua vez, necessitam de um desengajamento da cultura e do corpo. Nesta perspectiva, a educação tem que levar a criança a este estado de razão e de autonomia: desenvolver-se como sujeito cognoscente e radicalmente reflexivo. Para a criança crescer nessa direção, é necessário seu desengajamento do que vem da sua cultura e do seu corpo.
        Nesse artigo, tentei esboçar três alternativas a essa concepção do sujeito reflexivo e, portanto, às práticas reflexivas que ele pode desenvolver, pautadas em concepções diferenciadas de hermenêutica, mostrando como a hermenêutica forte de Charles Taylor oferece uma explicação promissora de práticas reflexivas, onde a expressão ou articulação das interpretações e auto-interpretações importantes para a construção da vida ética e de nossa identidade vira o foco principal. Esta reflexão é contrária ao pós-cartesiano, porque é social e incorporado. Se nos situamos sempre num espaço que é social, ético e estético, o ideal cartesiano de nos desengajar da sociedade e de nossos corpos para ser agentes reflexivos – agentes com a capacidade de deliberação racional e com uma identidade autônoma – é um mito, uma impossibilidade. Como vimos, a concepção habermasiana da razão comunicativa sofre de problemas parecidos. Ou seja, na tentativa de aumentar reflexividade, nós poderíamos perder os recursos necessários para construir nossa compreensão do mundo e nossa identidade. Portanto a razão prática tem que ser concebida como uma forma narrativa de deliberação sobre questões políticas, éticas e estéticas. Mas há limites à deliberação racional, à articulação do que é uma auto-interpretação melhor, mais apropriada. Essa idéia aponta na direção de uma ontologia ‘moral’ ou ‘ética’, não no sentido metafísico, mas como parte de uma ontologia social.
        Uma possível crítica a essa perspectiva poderia ser o seguinte: qualquer tentativa de uma formação reflexiva ou racional do sujeito seria necessariamente uma imposição da cultura e interpretações dos grupos mais poderosos nos menos poderosos, em nome da razão, e a conseqüente exclusão cultural e marginalização dos grupos cuja representação simbólica é associada ao concreto, ao particular e ao heterogêneo, em vez de uma suposta universalidade21 Mas essa crítica funciona somente no pressuposto de que a razão é algo abstrato, universal e desvinculado das vidas concretas e das interpretações contidas em tradições culturais. Vimos como a hermenêutica forte abre a possibilidade de se pensar a razão como uma forma de reflexão hermenêutica que é entrelaçada com as contingências da história e tradição, mas, ao mesmo tempo, capaz de se distanciar de determinados horizontes, culturas e tradições.
        Em sumo, o conceito de racionalidade e suas combinações, bem como o sujeito autônomo ou racional são vistos com desconfiança no pensamento contemporâneo. No entanto, o que é necessário é uma reconstrução do sujeito como agente racional, em vez de tentar eliminá-lo, o que significa uma visão da razão que reconstrói as formas com que justificamos pensamentos e ações e localiza os fundamentos do processo da justificativa nas condições históricas da vida. A falta de um fundamento absoluto para determinados valores e interpretações não nos leva a um relativismo que nega qualquer possibilidade de avaliá-los racionalmente. Na verdade, a comunicação intercultural, fator principal em sociedades contemporâneas e pluralistas, pode gerar um processo reflexivo de avaliação e (trans)formação de valores e tradições culturais.

A pressão ‘externa’ da situação empurra interlocutores a tentar construir terreno em comum e isso, por sua vez, não deixa intocados os pressupostos culturais previamente considerados absolutos (e não relativos). Mas o que é isto senão crítica? A desabsolutização ou decentração do velho, sua reconsideração em negociação com outros, avaliação de seus limites, do que é bom e ruim nele, e a construção criativa do novo. Isso é aprendizagem – não meramente aquisição de informação – mas desenvolvimento educacional (Young, 1996: 186).

        Tal processo de constituição de novas realidades, conhecimentos e identidades é o processo educativo. Além disso, a reflexividade desse processo está contida nos processos culturais concretos, especificamente os de produção de linguagem e seus recursos semânticos. Em outras palavras, é uma realização de Selves situados, que participam de uma razão prática engajada.

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NOTAS
1Partes desse trabalho, em formas diferentes, foram apresentadas no: Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação, UERJ, junho de 2002; I Seminário Internacional sobre Filosofia e Educação, UPF, setembro de 2003; e 1o Seminário Nacional de Filosofia e Educação, UFSM, maio de 2004. Esse trabalho faz parte de uma série de “exercícios de dedo”, que estou desenvolvendo para um estudo maior, que comparará vertentes de hermenêutica com a dialética marxista. O estudo é uma continuação de um projeto de pesquisa que analisa a contribuição do pensamento de Jürgen Habermas para a teoria educacional, que está integrado ao GEPPEEGrupo de Estudos e Pesquisa em Política, Ética e Educação – que desenvolve atualmente um estudo coletivo intitulado “Educação e Cidadania: A Formação do Cidadão e os Limites do Liberalismo Político”.
2Ver Luntley, 1995.
3Para essa tipologia, ver Smith 1997. Para uma análise interessante das relações entre hermenêutica e teoria educacional, ver Gallagher, 1992.
4Ver, por exemplo, Votre, 2002.
5Ver, Davidson, 1984. Para uma crítica de Davidson, ver Young, 1996:70-78, Habermas, 2003: 112-121.
6É interessante notar que a idéia de que línguas não existem é usada, com uma citação de Davidson, por Kanavillil Rajagopalan, num ensaio recente. A citação mencionada é a seguinte: “todos falamos tão livremente de língua, ou línguas, que tendemos a esquecer que essas coisas não existem no mundo real; o que existe são pessoas e seus diversos produtos acústicos e escritos. Esse ponto, óbvio em si mesmo, é, no entanto, fácil de esquecer”. Ver Rajagopolan, 1998:21. Contrário a essa perspectiva, eu defendo a necessidade de se compreenderem línguas, especificamente discursos, como existindo no mundo real (ver abaixo).
7As análises de Fairclough conseguem politicizar a noção de subjetividade e tratá-la em termos históricos, vinculando discurso com práticas sociais e, portanto, questões de poder, algo ausente em determinadas versões do pós-modernismo. Ver Aronowitz & Giroux, 1993: 75-80.
8Isso é a crítica que Habermas faz ao Foucault. Ver Habermas, 1990: 263-266.
9Um pressuposto negado, por exemplo, por uma determinada análise marxista, para a qual o ponto de vista do proletariado oferece exatamente tal perspectiva.
10Podemos dizer que essa teoria de pragmática universal substituiu sua teoria de interesses cognitivos como uma análise dos fundamentos sócio-antropológicos do conhecimento.
11Utilizo o termo “Eu”, em vez do termo inglês “Self”, porque o mesmo é utilizado pelo próprio Habermas, bemm como “Ego”. No entanto, o termo Self tem a conotação de uma agência reflexiva, que o conceito de Eu não necessariamente transmite. Apesar disso, utilizo os dois termos como sinônimos nessa parte do texto. Habermas muitas vezes utiliza o termo “Ego”, adotado em teorias psicológicas sobre o Identidade de Ego.
12Utilizo os prenomes pessoais “I” (eu), “me” (mim) e “we” (nos) em inglês porque são os termos utilizados por Mead e por Habermas.
13Minha discussão da teoria de subjetividade de Habermas, a partir daqui, se baseia na discussão de William Mark Hohengarten, na sua introdução de Habermas, 1992 (em inglês). Ver pp. xvii-xix.
14Ver a discussão em Smith, 1997: 39.
15Smith, 1997: 40.
16Obviamente, isso não quer dizer que o significado determina o que existe no mundo, pelo menos quanto ao mundo natural. Com relação ao mundo social, essa relação é muito mais complicada.
17Essas idéias são defendidas por Smith, 1997. Ver capítulo 3.
18Nesse parágrafo, sigo a caracterização dada por Smith, 1997: 60-65.
19Podemos dizer que grandes artistas e pensadores são exatamente aqueles que conseguem redefinir o espaço social, ético e estético através de uma reflexão hermenêutica, em uma tentativa de articular o significado de experiências vividas.
20Ver Smith, 1997:78-79.
21Ver Smith, 1997: 59