A ORIGEM HUMANA DO PODER E DA OPINIÃO PÚBLICA

Hilton Japiassu



        A Filosofia política nasce de uma reflexão sobre o poder e seus fundamentos. Construiu-se em tomo de questões que se apresentam como o verdadeiro dilema da vida pública: quais as fontes do Poder? Como justificar sua existência? Como conciliar ordem social e liberdade individual? Podemos construir uma cidade política ideal? Como conciliar justiça social e eficácia econômica? Não vamos nem podemos responder a todas essas questões. Queremos apenas compreender melhor as fontes humanas do poder que se encontram na origem dos Direitos do Homem.



1. MAQUIAVEL. FOI MAQUIAVÉLICO?


        No século XVI, o poder na Europa é monárquico e arbitrário: reis e príncipes pretendem detê-lo por “direito divino”. Enquanto todo mundo tenta mostrar que o poder é de origem divina, dois filósofos, Maquiavel e La Boétie revelam suas fontes humanas e as condições de seu exercício. Do ponto de vista sociopolítico, fica decretado o fim da Idade Média. Com O Príncipe (1532), Maquiavel demonstra: o primeiro dever em política consiste em partir dos fatos, em analisar a práxis real. Demonstra ainda: o poder político é gerado pela violência. Convencido de que não se deve dar liberdade a uma multidão corrompida, prefere estabelecer leis “científicas” segundo as quais as comunidades devem ser governadas. Preocupado com a eficácia, coloca os valores estritamente políticos acima das exigências da consciência individual. Não hesita em legitimar, nas mãos do Príncipe, a astúcia e a crueldade, se assim o exige o bem do Estado. Parece que esse pensamento reflete o cinismo da fórmula “o fim justifica os meios”. Não é um maquiavelismo ou técnica da duplicidade se comprazendo em esmagar os valores morais. O que o inspira é a Paixão pelo Estado. Os problemas anteriores não têm importância: Deus, Salvação, Justiça, Fundamento divino do poder, etc. Por que: a) só há urna realidade: a do Estado; b) só há um fato: o do Poder; c) só há um problema: o da conquista e conservação do poder.

        Independentemente das controvérsias, esse naturalismo tem o mérito de mostrar a autonomia do político, libertando-o de suas tradicionais implicações teológicas. Enquanto teórico do Estado, Maquiavel inspirou os responsáveis pela política moderna. Mostrou que o poder é fruto do gênio político e das armas espirituais. Quem o exerce deve ser capaz de unir manha e força: praticar a manha da raposa e a força do leão, pois é melhor ser temido que ser amado. Seu imoralismo é pura lógica: a religião e a moral são apenas condicionantes sociais. Precisamos aprender a lidar com os fatos. Num cálculo político, devemos excluir os juízos de valor capazes de falsear o resultado desejado. O Príncipe não deve praticar a brutalidade sem princípios: deve levar em conta os desejos dos homens. O que desejam? Ganhar dinheiro e alcançar honrarias. Para permanecer no poder e afirmar-se como chefe, precisa seduzir jogar o jogo dos valores dos outros (demagogia!). Ninguém antes tinha ousado definir o homem por sua crapulice, covardia e vaidades. A verdadeira virtude consiste em utilizar virtudes fora dos quadros morais, mas fingindo respeitá-las. Nada de cinismo: o jogo do parecer nasce da estupidez humana, mas se justifica por um fim mais alto: a glória do Estado. A virtude é a arte do político consistindo em governar sabendo tirar partido das oportunidades e tomar decisões na incerteza. Não devemos ver no Príncipe uma escola de imoralismo. Querer obedecer unïcamente a princípios de justiça, verdade e moralidade pode levar também a mais violência e ao caos. Quê lição podemos tirar? Todo poder é frágil, arbitrário e contingente (ausência de determinismo). Não possuindo fundamento absoluto, deve manter certa ordem numa Cidade submetida a tensões, conflitos e lutas intestinas.



2. A “SERVIDÃO VOLUNTÁRIA” DE LA BOÉTIE


        Qual o ponto de partida do Discurso da servidão voluntária (1547)? Revelar as fontes humanas do poder. Mas ele se situa do ponto de vista do povo, não do chefe. Reivindica seu direito de revoltar-se contra a tirania. E um dos primeiros a defender a liberdade de consciência, O chamado “direito natural” representa apenas opressão, alienação e cumplicidade secreta com o sistema. O problema que se deve pôr e resolver é o seguinte: por que o homem aceita obedecer a um mestre tirano se é detentor de uma liberdade inalienável? Como a dominação política nem a escravidão não são naturais, compete ao povo (por seu numero e força) derrubar todo poder tirânico ou despótico. Se ele se submete ás autoridades, é por várias razões: a) por costume, hábitos e passividade fazendo-o acreditar que sua condição é “natural”, que as coisas são assim mesmo, nada podendo fazer para mudá-las; b) por admiração pelo chefe e seus sinais de poder, por resignação e passividade: cada um vê no tirano a imagem do que gostaria de ser. Donde uma parte de responsabilidade do povo em sua própria sujeição, sua “servidão voluntária”; c) porque o mestre sabe “dividir para reinar”, O tirano sabe usar as divisões internas ao povo. A alguns indivíduos, concede privilégios e parcelas de poder, multiplicando sinais hierárquicos e favores. Donde a palavra de ordem: acordar e se insurgir contra os fardos da tirania. Maquiavel e La Boétie mostraram o quanto o poder dos reis, príncipes e senhores é o produto de um artifício. Se as instituições políticas são arbitrárias, cabe a nós compreendermos como os homens as construíram. Trata-se de procurarmos as condições de uma ordem social legítima. Os filósofos dos séculos XVII e XVIII vão encontrar uma resposta a essas questões em dois conceitos-chave: o de estado de natureza e o de contrato social.



3. “O HOMEM É UM LOBO PARA O HOMEM” de Hobbes


        Hobbes tenta compreender os fundamentos do poder político a partir do estudo do estado de natureza. Em da natureza humana (1650), descreve-o como o estado no qual estariam os homens se não houvesse nenhuma lei ou moral, Agiriam apenas em função de seus instintos ou desejos. Na fonte de nosso comportamento, há um esforço para atingir o que nos agrada e fugir ao que nos desagrada: movimento vital com um cortejo de apetites e de aversões. Triunfo dos desejos e das paixões, porque são essas instâncias afetivas que determinam à natureza do bem e do mal, mas sob controle da razão. O estado de natureza, resultando do jogo das forças individuais, é um estado de instabilidade e miséria. Submetido às paixões individuais, o homem não é naturalmente social, mas “selvagem”. Por procurar sempre satisfazer seus instintos, encontra-se numa situação de rivalidade permanente. E “a guerra de todos contra todos” ou “O homem é o lobo para o homem”. Felizmente, reconhece, ele é toda do de razão, desta faculdade que controla seu poderoso instinto de conservação. Por isso, para evitar a guerra permanente, decide elaborar um contrato e renunciar a seu direito natural, confiando seu exercício a uma instância política: assembléia ou república. Eis a origem do poder. O Leviatã nada mais é que o Estado soberano ao qual o homem aceita perder parte de sua liberdade em troca da proteção e da garantia dos direitos de cada um: abandona seus direitos naturais em proveito da paz.



4. “A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS” de Rousseau


        Em seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1756), Rousseau mostra que a verdadeira razão das desigualdades é de ordem política: elas nasceram de uma seqüência de acasos e acidentes históricos, sendo mantidas por convenção. Não resultam de nenhuma ordem natural. É o produto de uma ordem arbitrária. No estado de natureza, o homem não é bom nem mau, mestre nem escravo. E a sociedade que faz os dominantes e os dominadores. Mas o que ela fez, pode desfazer. Por isso, no ensaio, “Do contrato social: princípio do direito político” (1762) propõe estabelecer a legitimidade do poder político cujo funcionamento não repousa na autoridade paterna, na vontade divina ou na força, mas num pacto de associação (e não de submissão, como pensava Nobbes) onde cada um se compromete com todos, renunciando à sua liberdade individual natural em proveito da comunidade que lhe garante, em retomo, o direito de cidadão, vale dizer, a igualdade jurídica e moral e a liberdade civil. A este respeito, é enfático: somente o povo pode constituir o fundamento da autoridade política. O poder não possui um fundamento natural nem divino: só a sociedade funda o poder e o político. Neste sentido, a ordem social e o poder político são contingentes. Perde sentido o poder da monarquia absoluta. E deve ser questionado todo poder que não emanar do povo (construção social).



5. O “SAPERE AUDE” E O NASCIMENO DA “OPINIÃO PÚBLICA”


        No século XVIII surge uma das primeiras manifestações da “opinião pública” e do “espírito crítico” com a criação da chamada “República das Letras”. Formada por filósofos, eclesiásticos, aristocratas e pessoas mais ou menos instruídas, curiosas e amadoras, esta Associação tinha por objetivo propor um sistema de valores elaborado na prática das letras e das ciências. Este “império do talento e do pensamento” deveria exercer seu poder apenas sobre os espíritos. Esta república das letras adota como único critério o mérito intelectual. Constitui uma espécie de confraria de elite, indiferente às hierarquias sociais e distinções religiosas. Reivindica apenas uma autoridade espiritual, tendo por primeiro princípio a independência relativamente aos poderes temporais e religiosos existentes. Sua palavra de ordem: a crítica intransigente a toda arbitrariedade dos poderes e o combate corajoso aos preconceitos religiosos. Não se limita a pregar a tolerância em todos os níveis. Pretende ultrapassar toda forma de submissão ou de fanatismo. Funcionando graças à circulação de jornais literários e científicos, cultiva e defende ideais universalistas, Só a Razão, em sua universalidade, tem condições de reunir seus membros para além das diferenças nacionais, religiosas ou lingüísticas. A permanência dessa república exige o respeito ao seguinte contrato social implícito: cultivar e desenvolver a Razão universal e o ideal da objetividade. O que se pretende? Levar adiante o projeto de transformar as ciências em espírito crítico.

        Ao responder à questão: “O que são as Luzes?”, Kant declara: “A Aufklarung é a saída do homem do estado de tutela pelo qual é responsável”. Cabe a cada um a responsabilidade de cultivar sua razão, empreender um trabalho de elucidação e crítica permitindo-lhe emancipar-se. Cada um deve libertar-se da tutela e pensar por si. Sapere aude, ouse saber, saiba utilizar tua inteligência, não aceite mais nenhuma solução de preguiça que consiste em submeter-se às autoridades. Saber é um dever, um risco que cada indivíduo deve enfrentar para aceder ao estatuto de sujeito livre e racional. Espinoza já recomendava: não devemos fazer nenhuma concessão ao Saber, pois seria “fazer concessão â liberdade, á beatitude e à alegria” (ao desejo, dizia Lacan). Kant defende o ideal de emancipação pela Razão, a preocupação de garantir a liberdade de pensar em relação a toda autoridade espiritual ou temporal. Neste sentido, a ciência aparece como a quintessência do espírito crítico. Donde a idéia de se fazer um uso público da razão. Para se libertar da tutela e exercer o espírito crítico, o homem precisa de um fórum de discussão (espaço de debate). Descartes havia afirmado que a Razão é a coisa no mundo melhor difundida. Proclama a autonomia da liberdade humana ao declarar: a coisa mais importante do ser humano é seu livre arbítrio, este poder que tem de determinar-se a si mesmo por sua própria vontade e por razões ou motivos que escolhe independentemente das coerções exteriores e da servidão pessoal. As Luzes exigem a presença de um público e de certas formas de sociabilidade. Por isso, precisamos entender o Sapere aude em dois registros: do conhecimento e da política: a) na vertente cognitiva, a Azijklarung é o uso público da razão pelos indivíduos, apresentando-se como seu acesso à maturidade. Um adulto não anda de muleta. Deve caminhar sozinho e assumir o risco de pensar por si; b) na vertente política, a Aujklarung significa retirar o povo da menoridade, do estado em que outros pensam por ele: eis a condição para se fundar uma sociedade esclarecida. Não é um ponto circunstancial, mas uma norma universal indispensável para garantir a liberdade de pensar: o verdadeiro fim do conhecimento racional é a promoção dos direitos da humanidade.

        Portanto, à margem da antiga doxa, impõe-se uma nova realidade: a do público, condição do exercício da razão. Trata-se (em Kant) de um “público letrado” (exclui boa parte da humanidade). Esta restrição instala uma ambigüidade que nos impede de idealizar o século das Luzes e invocá-lo como modelo ou como remédio para todos os dogmatismos. O conceito de Luzes é interessante, não porque instaura a autoridade onipotente da razão crítica, mas porque estabelecer um sistema de valores feito de tensões e rivalidades reconfigurando os discursos como práticas das ciências. Por isso, o público não designa uma categoria da população ou uma entidade sociológica. Toda consciência individual faz uso público de sua razão. Esta é a condição da mais autêntica liberdade, a liberdade de pensar, nada tendo a ver com a outorgada por uma autoridade. Ao inscrever a razão em seu contexto histórico, perceberemos que a noção de “público” põe em cena uma nova categoria, essencialmente política: a de esfera pública. O publicum, até então sob o controle da administração, separa-se do poder e se constitui como opinião pública, ou seja, como um fórum de pessoas privadas obrigando o poder a justificar-se e a legitimar-se. Nos cafés, nos salões ou nas lojas maçônicas, nos jornais e nos periódicos surgem novas formas de sociabilidade. E começa a ser exercida uma nova forma de discurso: o discurso crítico. Este famoso espírito crítico, burilado em inúmeras formas de discussões, se exerce em relação ao governo, à religião, à cultura e à política... Assim se forma a opinião esclarecida distinta, não somente da razão de Estado, mas das opiniões privadas dos indivíduos. Constitui um espaço público político instalando-se entre a esfera do privado (cuja base é a família) e a esfera do poder público (do Estado, da polícia e da administração).

        Precisamos reabilitar a figura da opinião pública tal como surgiu nas Luzes. A esta tarefa se dedicou Habermas. Em A técnica e a ciência como ideologia (1965), denuncia: a opinião pública desempenha nenhum papel na política científica e nas escolhas tecnológicas. O poder de decisão foi-lhe gradualmente confiscado. Dois tipos de funcionamento prevaleceram nas sociedades modernas. Ambos contribuíram para que a solução das questões técnicas escapasse ao debate democrático. No modelo decisionista, as decisões políticas encontram-se nas mãos da burocracia; no tecnocrático, são confiadas aos experts (expertocratas). A opinião só pública aparece para aclamar ou desempenhar o papel de figurante. Por isso, a fim de buscarmos as condições de um debate democrático, propõe um modelo pragmático onde os experts seriam encarregados de aconselhar as instâncias de poder e decisão, cabendo á opinião pública promover a discussão livre nos fóruns e na mídia. Teríamos uma ciência cidadã, aquela em que os cidadãos participariam dos processos de decisão. E o que já ocorre quando participam das questões envolvendo as ciências biomédicas e do meio-ambiente. Neste domínio, multiplicam-se os comitês de bioética e os movimentos associativos debatendo as questões de meio-ambiente.

        Hoje, nossa condição de cidadãos livres e responsáveis nos permite dizer: nosso projeto democrático seria mais bem definido pela fórmula “Saber e Opiniar” (julgar, emitir um juízo). Opinare aude, deveria ser nosso slogan: pensar fora dos muros dos paradigmas estabelecidos, ousar, formar nosso juízo sobre os problemas tratados pelos cientistas e técnicos. Porque devemos pensar por nós mesmos, e não deixar que os técnicos pensem por nós. Trata-se de concebermos a opinião, não como uma fatalidade, ligada á impossibilidade de possuir a ciência, mas como uma escolha voluntária. Neste sentido, como término de um processo de reflexão sobre a ciência, a tecnologia e seu lugar na sociedade, a opinião pode ser o ato inaugural de uma ciência realmente democrática Ter a coragem de emitir nossas opiniões significa ter a coragem de pensarmos por nós mesmos e formarmos nosso próprio juízo sem termos pleno conhecimento de causa. Precisamos reabilitar o regime da opinião como virtude própria do cidadão. Cada um deve tomar uma decisão na incerteza. E valorizar a opinião como ato de coragem, ousar, pensar sem dispor de evidências, correr o risco de emitir juízos sabendo que não sabe. Não se trata de pretender que todos os saberes se equivalem, nem que os experts não sejam mais competentes que os usuários, mas de reconhecer que a qualidade de usuário confere uma outra forma de saber, uma prudência (phrônesis) suscetível de fornecer respostas a questões que a ciência não se coloca nem pode resolver. Em suma, conferir ao cidadão o direito e o poder que tem de decidir sobre todas as questões que lhe dizem respeito.