DISCUTINDO OS TERMOS DE UMA EQUAÇÃO DE CONGRUÊNCIA:
CULTURA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL*

Denise Fonseca**


                        

Equação de congruência Álg. Relação de congruência que se estabelece entre incógnitas, ou entre uma incógnita e uma constante.
Equação [Do lat. aequatione.] S. f. Mat. Qualquer identidade entre termos que só é satisfeita para alguns valores dos respectivos domínios.
Congruência [Do lat. congruentia.] S. f. Harmonia duma coisa com o fim a que se destina; coerência.

Cultura [Do lat. cultura.] S. f. O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. Nas ciências humanas, opõe-se por vezes à idéia de natureza, ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais. Cultura é a parte ou o aspecto da vida coletiva, relacionados à produção e transmissão de conhecimentos, à criação intelectual e artística, etc. O processo ou estado de desenvolvimento social de um grupo, um povo, uma nação, que resulta do aprimoramento de seus valores, instituições, criações, etc.; civilização, progresso.


Dicionário Aurélio – Século XXI



        Um dos primeiros e únicos pensadores do tema do desenvolvimento econômico a colocar a sua discussão em termos culturais foi Celso Furtado (1984). Para ele, o conjunto das características de uma sociedade, suas interações sociais, suas instituições, seus valores, a maneira como ela constrói e transmite conhecimentos e a forma como os representa — em uma palavra: a sua cultura — é o que define a sua visão de desenvolvimento e o que condiciona — positiva ou negativamente — a sua consecução. Por outro lado, pelo menos do ponto de vista semântico, cultura pode ser entendida como o próprio desenvolvimento social de uma comunidade — e vice-versa —, independentemente da sua escala ou dos seus conteúdos. Nosso desejo neste trabalho é o de contribuir para que a perspectiva proposta por Furtado venha a ser apreciada por um renovado esforço acadêmico, pois estamos convencidos de que o patrimônio imaterial das comunidades — ético e cultural — pode constituir o pilar sobre o qual se apóie o chamado desenvolvimento sustentável. Porém, para que a equação que conjuga cultura, desenvolvimento e sustentabilidade venha a ser de congruência, é preciso que se definam valores para estes termos, que levem a uma harmonização entre meios e finalidades.

        A dificuldade de equacionamento dos termos desenvolvimento e cultura, particularmente para as sociedades ditas em desenvolvimento, é um dado no mínimo curioso pois, cultura e desenvolvimento [des involvere] essencialmente mantêm uma relação de coerência, na medida em que ambas têm a ver com características que não são inatas — ou seja, que são construídas na vida em sociedade —; que pressupõe cooperação — ou seja, que não prescindem de vontade compartilhada — e que se relacionam com a produção e o conhecimento que visam o progresso — ou seja, o medrar e expandir de algo que esteve encapsulado ou cerceado. Em última instância, cultura e desenvolvimento poderiam ter sido facilmente considerados termos de uma equação de congruência desde sempre, porém, se sistematicamente não o foram, somos levados a crer que esta identidade em algum momento se perdeu porque o valor de pelo menos um destes domínios se modificou política e epistemologicamente.

        Por definição, uma relação de congruência se dá quando ocorre uma harmonia dos fins aos quais uma ou mais variáveis de uma equação se destinam. Se nos resulta difícil reconhecer a identidade existente entre cultura e desenvolvimento, talvez seja porque os valores que associamos à estes termos possuam conteúdos incompatíveis ou talvez porque, tomados isoladamente, eles estejam impregnados de falaciosas e imobilizadoras dualidades. Em ambos os casos, talvez seja chegada a hora de refletirmos sobre as nossas próprias concepções de fins e meios. Academicamente falando, talvez seja este o tempo de buscarmos categorias teóricas que nos ajudem a pensar cultura e desenvolvimento em termos da concretude da nossa própria experiência histórica, o que, de passagem, talvez nos permita desenvolver práticas políticas e sociais mais justas e equilibradas, além de informar a concepção de políticas públicas, tornando-as menos míopes e, portanto, mais efetivas.

        De um lado, há que se avançar na construção de uma percepção de cultura mais pluralista, afastando-nos o mais rápido possível das dicotomias tais como, canônico/folclórico, letrado/popular, global/local, nacional/regional, até a mais recente clássica/alternativa, entre outras, todas elas formas de construção e consolidação de uma hierarquia de valorização/desvalorização das culturas e das suas expressões, cuja finalidade é transformar diferenças em desigualdades, discriminar e segregar criadores, expropriar e apropriar a criação. Ainda na linha do rompimento com simplismos, quem sabe fosse útil pensarmos desenvolvimento a partir de uma outra racionalidade, menos técnica e ligada a resultados — naturalmente mensuráveis e comparáveis, o que permite dividir as nações entre desenvolvidas e em desenvolvimento —; que fragmenta os saberes em busca de resultados imediatos e acaba por enfrentar apenas as situações pontuais. Quem sabe seja chegada a hora de utilizarmos uma lógica mais holística, como base de uma racionalidade axiológica, para definirmos outros valores para desenvolvimento, que o reaproximem da sua natural identidade com cultura. Estamos falando de uma nova racionalidade que,

                        

...embora condicionada pelo modelo dominante da primeira, procura unificar os saberes de maneira interdisciplinar (...), priorizando a formação de valores que possam contribuir para o agir ético da pessoa humana na sociedade. Sua escala de tempo não é o imediato, pois o processo de formação de valores éticos, culturais, ambientais e religiosos acontece a médio e longo prazos, transformando os hábitos (héxis) e os costumes (ethos) insustentáveis. (Siqueira, 2002, p. 5).


        Acreditamos que para tratar de desenvolvimento sustentável devemos, necessariamente, rever a história deste conceito, não apenas para compreender as muitas agendas políticas que ele já abrigou e abriga — os seus fins — mas, sobretudo, para reconhecer os lócus de enunciação e os agentes das suas principais interlocuções — os seus meios — em busca de um espaço onde possa ocorrer este “agir ético”, fundamento da racionalidade que se deseja cultivar.

        Quando em junho de 1992 se realizou no Rio de Janeiro a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento — a Rio 92 —, o conceito desenvolvimento sustentável foi, pela primeira vez, explicitamente incluído nos documentos que seriam discutidos pelas representações dos países participantes. A questão da sustentabilidade já estivera pautada, com diversos conteúdos, desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972. Entretanto, o conceito desenvolvimento sustentável somente ganhou corpo através dos trabalhos do Conselho de Administração do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) — que negociou a sua primeira definição a partir de 1973, tentando conjugar desenvolvimento econômico e preservação — e da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na década seguinte, articulando conservação ambiental e desenvolvimento econômico através da cooperação internacional (Vieira, 2002, p. 42-47). Embora a tese do desenvolvimento sustentável não estivesse incluída como pauta das discussões da Rio 92, os temas desenvolvimento sustentável e soberania nacional estavam perfeitamente subentendidos por todos os participantes, como resultado das tensões existentes entre as regras internacionais de proteção ambiental e as necessidades de desenvolvimento econômico nacionais, explicitadas em duas décadas de relações internacionais (Vieira, 2002, p. 49-50).

        Na definição do conceito desenvolvimento sustentável, com o qual se operava no princípio da década de 1990, o termo desenvolvimento significava a capacidade dos países de produzir mais, o que equivale a dizer, que a sua primeira parte estava diretamente ligada ao campo da economia. A palavra sustentável, naquele momento, se referia às idéias de preservação, conservação e proteção ambiental. Desta maneira, o termo funcionava como um adjetivo do substantivo desenvolvimento, que lhe atribuiria a desejável qualidade de incólume à natureza e portanto, sem apresentar riscos para a sobrevivência das gerações futuras.

        Desta relação improvável entre economia e natureza, cujos valores eram incompatíveis e antagônicos por definição, nascia a tensão essencial do conceito desenvolvimento sustentável de então. Naquele contexto, a política funcionava como uma instância articuladora desta tensão, ao tentar tratar, tanto das características dos regimes nacionais — para permitir que eles fossem capazes de promover o que se entendia por desenvolvimento, tomado como sinônimo de aumento da produção para a promoção da melhoria da qualidade de vida no planeta —, quanto das relações internacionais — buscando maneiras de garantir aos países em desenvolvimento a possibilidade de aumentar as suas produções, sem permitir que neste processo eles se transformassem em ávidos predadores da natureza, com perigos potenciais para todos. No entanto, permanecia sem ser pautada a discussão sobre a relação custo/benefício — econômico e político — a ser vivida pelas nações desenvolvidas, caso elas viessem a endossar plenamente o conceito desenvolvimento sustentável, na medida em que elas desejavam garantir a salubridade da vida no planeta, tanto quanto não estavam dispostas a abdicar dos elevados padrões de consumo dos seus cidadãos.

        No centro desta tensão estavam os estados nacionais e suas soberanias. A propósito do difícil equacionamento entre desenvolvimentos econômicos nacionais e sustentabilidade ambiental global, a principal interlocução ocorria entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento através dos seus estados nacionais. A questão de fundo para todos era proteger-se de um desastre ambiental a futuro, sem que para isso devêssemos deixar de praticar as nossas velhas práticas para nos superar — e superarmos aos demais — em nosso afã de consumir mais.

        O impostergável processo de redefinição epistemológica do termo desenvolvimento começou quase imediatamente após o fechamento da Rio 92. Não demorou muito para que os fogos de artifício das celebrações da queda do muro de Berlim em 1991 se transformassem, primeiramente em rajadas de mísseis disparados sobre o leste europeu, e logo depois em disparos de armas de fogo e sangrentas explosões pelo mundo inteiro, no bojo do renascimento da intolerância e da violência, como respostas ao temor da dominação e ao horror da expropriação. Com a questão social cobrando protagonismo em toda parte, passou-se a pensar desenvolvimento, menos em termos da necessidade de manter ou ampliar as ofertas do mercado — ou seja, o desejo de aumentar a produção e o consumo — e mais em termos da necessidade de dar acesso à ele a uma porção maior da humanidade — ou seja, a redução das desigualdades sociais e a superação da pobreza no mundo — como estratégia de alívio das tensões sociais.

        Os trágicos acontecimentos do período subseqüente, e particularmente as devastadoras ocorrências de 11 de setembro de 2001 em diante, fizeram com que a discussão sobre sustentabilidade tomasse como central o tema da segurança, um significado nunca antes imaginado pela militância ambientalista.

        Na Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada em Joanesburgo entre agosto e setembro de 2002 — a Rio+10 — o termo desenvolvimento foi utilizado com um novo significado. Naquele contexto de insegurança política e social mundial, de aprofundamento das desigualdades sociais nos países em desenvolvimento1 e de inaceitáveis quebras de compromisso na solidariedade ambiental mundial, o tema da pobreza substituiu o da produção no centro do debate sobre desenvolvimento, deslocando seu eixo do campo da economia para o da sociedade.2 Os critérios para desenvolvimento adotados em Joanesburgo passaram a ser os de eqüidade social, erradicação da pobreza, precaução, participação popular, responsabilidades comuns, porém diferenciadas e o novíssimo conceito de governança (Vieira, 2002, p. 55), apontando claramente para o reconhecimento de novos interlocutores localizados na esfera pública não-estatal, cujo agente principal era a sociedade civil organizada para além dos estados nacionais.

        Por outro lado, a segunda parte do conceito desenvolvimento sustentável passou ser percebida a partir do temor da insegurança, sobretudo daquela referente à manutenção e à eficiência dos investimentos econômicos, em um mundo cada vez mais sujeito à pobreza, às guerras e aos desmandos das lideranças locais, cujas ações obedecem a outras éticas, e que se mostravam capazes de levar as nações desenvolvidas a pagar preços nunca antes cogitados — econômicos, políticos e sociais — pelo seu desenvolvimento. O termo sustentável deixou de ser um mero adjetivo e, ao centrar a sua preocupação menos na natureza e mais na economia-política, submeteu o conceito desenvolvimento sustentável a uma nova tensão essencial, desta vez estabelecida entre sociedade — e suas novas formas de exercício da política — e economia.

        Com os estados nacionais dos países em desenvolvimento cada vez mais esvaziados, instalaram-se no centro desta tensão, de um lado, novos agentes sociais oriundos da esfera pública não-estatal,3 ou seja, as incontáveis instituições da sociedade civil organizada — tais como ONGs, associações, cooperativas, fundações, fóruns e movimentos sociais — e de outro, os diferentes representantes dos interesses do capital e seus mediadores — entre eles, o FMI, o Banco Mundial, o BID, os organismos multilaterais governamentais ou empresariais e, em uma certa medida, as próprias agências das Nações Unidas. A questão de fundo agora parece ser o desejo de quitar o débito social, sem gastar um centavo a mais do que o estritamente necessário para que a lógica da produção econômica possa se reproduzir sem constrangimentos ou riscos — sejam eles sociais ou ambientais — e aonde esta medida não for suficiente, que a violência ou a guerra o façam, custe o que custar.

        Permanecem sem discussão os valores éticos, culturais e ambientais que poderíamos associar ao conceito desenvolvimento sustentável e que seriam norteadores de uma nova racionalidade, verdadeiramente transformadora dos nossos ethos (costumes) e das nossas prâxis (ações). É urgente que superemos, dentre as nossas muitas contradições, a distância que existe entre as nossas teorias ideais e as nossas práticas cotidianas, pois:

                        

Os princípios teóricos e as questões sócio-ambientais estão perdendo lentamente a credibilidade na medida em que se transformam em utopias não encarnadas na história cotidiana da sociedade, como também pela presença contraditória das práticas sociais e ambientais no plano internacional e local, tanto por parte das instituições como das pessoas. Os resultados de ações concretas e sustentáveis, vividas no local, passam a ser hoje referenciais importantes para a superação destes dualismos. (Siqueira, 2003, p. 24).


        Embora a história do conceito desenvolvimento sustentável até agora tenha deixado de fora esta concepção, estamos convencidos de que esta é potencialmente uma equação de congruência, particularmente no plano local e especialmente se resgatarmos a identidade natural que existe entre cultura e desenvolvimento.

        No entanto, quando passamos a pensar a cultura como o eixo central, entorno do qual venhamos a girar os nossos projetos de desenvolvimento, ficamos expostos ao risco de produzir mimetizações culturais, na medida em que estamos imersos em uma sociedade globalizada e conectada por redes de informação, que facilmente submetem valores éticos e culturais locais a certos padrões específicos, impostos ao todo como gerais pela força dos meios de comunicação de massa. No nosso entender, o antídoto natural para este contágio é o resgate, revalorização e re-significação das identidades culturais locais, assumindo seus valores como referência para a construção da idéia de sustentabilidade e conferindo concretude aos ideais teóricos da ética sócio-ambiental mundial.

        Nosso trabalho tem sido o de agregar reflexão teórica ao conceito identidade cultural, entendido como sentido de pertencimento para, a partir dele, “encarnar na história cotidiana” da nossa sociedade outros conceitos — tais como, redes sociais de solidariedade, patrimônio cultural imaterial, sociedade civil organizada e seu corolário cidadanização, entre outros — que nos permitam pensar novos valores para desenvolvimento sustentável.

        No transcurso das duas últimas décadas, o tema da identidade cultural4, entendida como identidade nacional, tem sido objeto da atenção crescente dos cientistas sociais. No plano dos Estudos Culturais, a produção sobre a relação entre identidade e cultura avançou pela trilha aberta por Hobsbawm (1983) através dos trabalhos de Anderson (1986), Hall (1992), Bhabha (1994), Castells (1996) e Huntington (1997), entre outros. Com diferentes ênfases estes autores tratam de entender a natureza do sentido de pertencimento que anima as sociedades, especialmente porque o paradigma nacional vem sistematicamente perdendo relevância e capacidade de promover coesão social. Embora sejamos beneficiários das contribuições de muitos deles, por estarmos preocupados com os mecanismos internos de funcionamento das redes sociais de solidariedade intracomunais, nos interessa particularmente comentar o conceito identidade de projeto, oferecido por Manuel Castells.

        Em O Poder da Identidade ele sustenta que uma identidade de projeto se constrói quando os agentes sociais tratam de redefinir a sua posição na sociedade, a partir dos seus próprios legados culturais (Castells, 1996, p. 425-427). Segundo o autor, estes tipos de agentes precisam, necessariamente, ser mobilizadores de símbolos, o que equivale a dizer que, para obter sucesso, eles devem se manifestar através dos meios da principal corrente cultural para subvertê-la em benefício de valores subjugados. Em outras palavras, há que dar visibilidade aos conteúdos culturais historicamente silenciados, re-significando-os e criando novos símbolos que os representem. Além disso, esta organização deve assumir uma estrutura descentralizada e integrada em rede, às quais ele chamou de redes de mudanças sociais.

        Muito embora o conceito que desejamos encarnar — identidade cultural — já tenha sido utilizado, principalmente por Stuart Hall (1992), nossa concepção de identidade cultural se aproxima do conceito identidade de projeto proposto por Castells (1996), e se afasta da concepção que Hall utiliza, na mesma medida em que se distancia das preocupações com a questão da nacionalidade, centrando sua ênfase na cultura e no sentido de pertencimento que alimenta as redes sociais de solidariedade.

        Assumindo que toda identidade é construção e que toda construção de identidade implica relações de poder (Castell, 1996, p. 426) é nosso desejo afastar a limitada concepção de poder que carregamos, que — por razões históricas e culturais — se apresenta ligada às idéias de constrangimento e coerção, em última instância, violência. Estamos convencidos de que o poder que alimenta as identidades culturais emana dos valores dos seus sujeitos coletivos — o seu patrimônio cultural imaterial — sendo, por esta razão, crucial resgatá-los e deles se apropriar. É dessa ordem de preocupações que nos ocupamos, pois entendemos estar claro que até mesmo o capitalismo, predador dos homens e da natureza, em sua sanha devoradora de valores para gerar mais-valia, já se apercebeu de que em tempos de capitalismo cultural — ou bio-capitalismo — (Lazzarato, 2001, p. 91-106), são os nossos valores éticos e culturais, ou seja, o material imponderável da nossa subjetividade, o bem mais precioso a ser acumulado. E se é disso que advém o lucro — e conseqüentemente a exploração —, bem pode ser desse mesmo repositório que derivem as nossas melhores referências para a construção de uma nova concepção de desenvolvimento sustentável.

        Em nosso trabalho de pesquisa buscamos conhecer as redes sociais de solidariedade que existem hoje nas comunidades pobres da cidade do Rio de Janeiro e suas novas formas de exercício da cidadania. Tratamos de agregar concretude ao conceito sociedade civil organizada, primeiramente porque ele tem sido adotado pelas próprias comunidades para descrever os agentes sociais daquilo que algumas vezes elas chamam de cidadanização e depois por que este nos descreve melhor os agentes sociais da esfera pública não-estatal, que hoje se organiza na sociedade brasileira, aonde os termos terceiro setor e organizações não-governamentais têm se mostrado inadequados, sendo muitas vezes refutados. Desta experiência podemos identificar quatro formas de associações identitárias funcionando sistematicamente:

                        

  • Redes familiares;
  • Redes religiosas;
  • Redes de vizinhança;
  • Redes de interesses compartilhados.

        Cada uma dessas formas de associação identitária possui uma lógica própria de integração entre os seus membros e um código de condutas que garante a sua fortaleza como sujeito coletivo, legitima a cada um dos seus membros e define os limites desta identidade, definindo também os seus não-membros. Cada um desses sentidos de pertencimento responde por aspectos particulares da existência material, emocional e espiritual dos seus membros. O núcleo duro do poder que emana destas formas de identidades tem a ver com o sentido de pertencimento que elas oferecem, e se apresenta sob a forma de aceitação, solidariedade e lealdade. No interior de cada uma destas formas de existir na comunidade, a capacidade de resistir dos seus indivíduos será tanto maior, quanto mais estruturados estiverem os códigos éticos daquela rede, independentemente do valor dos seus conteúdos.

        As redes familiares são as principais responsáveis pelas práticas de proteção física e sobrevivência material. As redes religiosas respondem primordialmente pela legitimação social e pelas oportunidades sociais extra-familiares. As redes de vizinhança estão ligadas aos limites físicos que definem inserções socioeconômicas e percepções políticas. Por último, as redes de interesses compartilhados respondem pela sobrevivência de valores éticos, estéticos, educacionais e comportamentais especiais, que excedem as esferas da família, das igrejas e das associações de corte geográfico.

        Muito embora seja destas redes que emanem incontestáveis fortalezas sociais, a sustentar as redes sociais de solidariedade que importa conhecer, é delas também que derivam as mais dolorosas fragilidades que propiciam o exercício de práticas cotidianas de violência mútua, um substrato ético que dá suporte à violência maior a que todos estamos submetidos na atualidade. Assim como o núcleo duro do poder de cada uma destas identidades tem a ver com o sentido de pertencimento, o cerne destas formas cotidianas de enfraquecimento mútuo é justamente o não-pertencimento que estas mesmas identidades constroem ao seu redor, através de disputas de poder e de preconceitos de toda sorte.

        No nosso entender, trabalhar com resgate de valores éticos e culturais para, a partir deles, re-conceituar a discussão sobre desenvolvimento sustentável, significa encontrar as estreitas vielas deixadas pelas práticas sistemáticas de enfraquecimento mútuo para, através delas, fazer avançar a construção de identidades culturais poderosas e transformadoras que permitam encarnar uma nova racionalidade — na vida e na utopia. Trata-se de buscar os valores para os domínios desenvolvimento, cultura e sustentabilidade que transformem definitivamente desenvolvimento sustentável em uma equação de congruência.



Referências Bibliográficas



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* Apresentação da Coordenadora Geral do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente, NIMA/PUC-Rio no “Seminário Internacional Política de Habitação Popular e Trabalho Social.” Rio de Janeiro, 06 de abril de 2004. A autora agradece, em nome do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e do NIMA/PUC-Rio, o honroso convite do “Núcleo de Pesquisa Favela e Cidadania”, que realizou este evento com o apoio do Programa de Pós-graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do CNPq e da Caixa Econômica Federal e estende o seu agradecimento em especial à Dra. Maria de Fátima Cabral Marques Soares.
** Denise Pini Rosalem da Fonseca, arquiteta, historiadora. Realizou seus estudos de graduação em Arquitetura na USP e na UFRJ e sua licenciatura em História na PUC-Rio. Cursou os programas de pós-graduação em Planejamento Urbano da COPPE-UFRJ; em Estudos Latino-americanos da Universidade de Houston e em História Econômica e Social da USP. É Coordenadora Geral e do Setor de Desenvolvimento Sustentável do NIMA/PUC-Rio, coordenadora de uma linha de pesquisa do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente, NIREMA/PUC-Rio e Professora Assistente da PUC-Rio desde 1992. A partir de 2001 foi incorporada ao programa de Pós-graduação do Departamento de Serviço Social, no qual coordena a linha de pesquisa “Questões Socioambientais, Estudos Culturais e Desenvolvimento Sustentável”.
1 A respeito do aprofundamento das desigualdades sociais ocorrido na América Latina durante a década de 1990, ver: CEPAL. Panorama Social de América Latina, 2000-2001. Santiago de Chile: 2001; ou o seu resumo, com ênfase no caso brasileiro em: Reinaldo Bajraj, “Balance Social de América Latina” em: FONSECA, D.P.R. e SIQUEIRA, J.C. Meio Ambiente, Cultura e Desenvolvimento Sustentável. Somando esforços e aceitando desafios. Rio de Janeiro: Historia y vida ; Sette Letras, 2002. pp. 15-36.
2 Para uma discussão sobre as conseqüências urbanas da recente intensificação das desigualdades sociais na cidade do Rio de Janeiro e suas articulações com os temas da segurança e da violência ver: GOMES, M.F.C.M. e RAMOS, M.H.R. “Segregação sócio-espacial na cidade do Rio de Janeiro: uma reprodução da desigualdade social”, O Social em Questão. Cultura e Sustentabilidade. Denise P.R. da Fonseca (org.). Vol. 10, Número 10, Ano VII. Segundo semestre de 2003. Departamento de Serviço Social da PUC-Rio. pp. 41-57.
3 Para exemplos da ação dos novos agentes sociais da esfera pública não-estatal, ligados ao tema habitacional ver: TURRADO, Verônica, “Habitat & ONGs: um conto em duas cidades. Uma comparação da contribuição social de ONGs para o enfrentamento da questão habitacional nas cidades do Rio de Janeiro, Brasil e Córdoba, Argentina, na década de 1990.” Dissertação de Mestrado. Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, 2004.
4 Esta discussão sobre o conceito identidade cultural está desenvolvida em: “Identidade cultural e desenvolvimento local: uma experiência de sucesso”, em: FONSECA, D.P.R. da e SIQUEIRA SJ, J.C. de (Orgs.), Meio Ambiente, Cultura e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Historia y vida ; Sette Letras, 2002.