RESENHA

DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o privado. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

Inez Terezinha Stampa1



        Nesse livro, Gilberto Dupas, coordenador do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, investiga algumas das crescentes inquietações provocadas pelas novas realidades sociais, políticas e econômicas deste início de século, principalmente frente à nova conjuntura gerada após os atentados de 11 de setembro de 2001.

        O autor se propõe a analisar "o imenso espaço vazio" de ação do Estado, um órfão da privatização, diante de uma sociedade afetada pela globalização. "Privatizou-se o Estado e não se publicizou o privado" (p. 80), afirma o autor em um trecho da obra. O livro tem apresentação de Alain Touraine, diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, e de Francisco de Oliveira, professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da USP.

        Embora seja relativamente curto (145 páginas), trata-se de um livro denso, que pode ser classificado como continuação de três antecedentes ("Economia Global e Exclusão Social", "Ética e Poder na Sociedade da Informação" e "Hegemonia, Estado e Governabilidade") . Juntos formam um esforço abrangente de explicação para o que vem ocorrendo no mundo desde a queda do Muro de Berlim e a conseqüente adoção universal de princípios econômicos, políticos e mesmo filosóficos a que se costuma chamar de "globalização".

        Depois de ter tratado de outros efeitos desse processo nos trabalhos anteriores, Dupas debruça-se agora especificamente sobre como ele afeta as fronteiras entre as esferas pública e privada, tornadas muito menos claras e definidas do que foram no passado, pois a nova forma de reprodução do capitalismo requer essa “metamorfose constante” entre o público e o privado (Francisco de Oliveira, 2ª capa).


        A maioria dos livros de economistas, com freqüência, são escritos em jargão técnico, tratam de temas de grande especificidade e parecem ter como objetivo principal marcar posição em debates restritos a reduzidos círculos de especialistas. Não é o caso de "Tensões Contemporâneas entre o Público e o Privado", onde o autor levou o universo de suas preocupações intelectuais para além da economia e, deste modo, se ocupou em entender e explicar os grandes dilemas universais a partir de um referencial teórico das relações materiais, em vez de cuidar só de fenômenos de conjuntura ou detalhes particulares da produção, distribuição e consumo de bens.

        Dupas preocupa-se, justificadamente, com o destino da individualidade e da cidadania nas sociedades contemporâneas. Mostra como a diversidade, em todos os sentidos, vem sendo ameaçada por um sistema de mercado que, contraditoriamente, usa um discurso de defesa da liberdade de opções. Demonstra como, aos poucos, o mundo público tem sido ocupado em quase todas as atividades pelo privado.

        Assim, indica que a globalização contemporânea é uma força normativa que impõe diretrizes e política. Se elas conduzem a crises graves ou becos sem saída, e cita a Argentina como caso exemplar, o país que assuma sozinho o risco de haver se comportado como lhe foi exigido. O sistema internacional, cujo sucesso dos seus atuais países ricos foi erguido infringindo sistematicamente essas normas, lava suas mãos.

        Os Estados nacionais vêem-se pressionados em duas frentes. Exige-se um Estado minimalista, no qual a autonomia se reduz a opções restritas à aplicação das normas neoliberais. De outro lado, desregulam-se os mercados, privatizam-se os serviços e assiste-se a uma progressiva deterioração do quadro social, o que, paradoxalmente, requer um Estado forte e um aparato regulador muito eficiente, até para ter o poder de impor à sociedade civil condições penosas como as indexações das tarifas superiores ao aumento dos salários, consideradas necessárias à remuneração adequada dos capitais. Essa estratégia paga um alto preço com a redução progressiva de margens de ação, erosão da soberania nacional e das condições de governabilidade.

        Quanto à sociedade civil, seu poder se limita pelo enfraquecimento contínuo dos movimentos sindicais, incapazes de se viabilizarem no suporte ao crescente volume de trabalho informal e de desemprego, em decorrência dos processos intensos de terceirização e de automação. O caso recente do Brasil merece especial atenção. Os sindicatos, especialmente os mais à esquerda, foram essenciais à eleição de Lula e seus líderes passaram a ocupar importantes funções na máquina do governo. Agora, eles têm que assistir, em posição muito desconfortável, à contínua deterioração dos salários, ao aumento do desemprego e da informalidade. A ação das ONGs e dos movimentos sociais tem avançado bastante, no entanto sem saber a quem reivindicar e como influir na alteração mais ampla do processo global e nacional, que conduz a progressivas assimetrias, aumento da pobreza e concentração de renda e poder.

        À primeira vista suas reflexões resultam em teses provavelmente pessimistas. Às grandes corporações são atribuídos poderes ainda maiores do que já têm. O futuro é descrito quase como uma sentença de morte para a esperança. O cidadão desapareceu, substituído pelo consumidor. Esse tom parece útil como sinal de alerta. Pode ser, no entanto, que esteja certo Alain Touraine, autor da quarta capa de "Tensões Contemporâneas entre o Público e o Privado", ao afirmar: "se alguém vir nesse livro uma visão radicalmente pessimista do mundo contemporâneo é porque o leu depressa demais. Embora descreva, dramaticamente, o desaparecimento dos grandes movimentos sociais e do espaço público e veja o planeta cada vez mais dominado pela hegemonia política e econômica dos Estados Unidos (...), vejo a busca, a descoberta e a análise de novos atores, de novas formas de criação cultural e de novos conflitos sociais capazes de substituir as esperanças e os relatos de outrora (...)".

        No entanto, o autor aponta alternativas a seus prognósticos menos otimistas, ao afirmar que “o grande desafio para a preservação da cultura democrática implica a reconstrução de um espaço público e a volta do debate político” e que “o desafio contemporâneo é, pois, tentar constituir uma nova identidade coletiva quando as utopias se foram e a idéia de formar parte de um todo se desacreditou junto com as noções de crença e nação, o que acentua a necessidade inerente ao ser humano de dar sentido à vida e à sua transitoriedade” (p. 90-91).



1Doutoranda em Serviço Social pela PUC-Rio.
2DUPAS, G. Economia Global e Exclusão Social: pobreza, emprego, Estado e o futuro do capitalismo (3ª ed. revista e ampliada). São Paulo:, Paz e Terra, 2001; DUPAS, G. Ética e poder na sociedade da informação (2ª ed. revista e ampliada). São Paulo: Editora UNESP, 2001; DUPAS, G. Hegemonia, Estado e governabilidade: perplexidades e alternativas no centro e na periferia. São Paulo: SENAC, 2002.