A arca da escrita desenhada a cem dedos

por Henrique Rodrigues


        Mesmo com poucos anos de existência, já é possível afirmar que o surgimento do e-mail foi um dos maiores avanços dos meios de comunicação. Situado entre a carta e a ligação telefônica, é mais livre que a primeira, porém não chega a ter a fugacidade da segunda. O correio eletrônico é, portanto, um modo perfeito de se transmitir e receber uma mensagem de conteúdo informal mas que não se evapore (a sentença verba volant, scripta manent se mostra mais uma vez aplicável).
        As manifestações literárias, naturalmente, não poderiam - nem deveriam - fechar os olhos para esse novo modo de expressão escrita. Na ficção já fez muito sucesso o romance epistolar, no qual toda a narração é disposta em forma de cartas, como em Drácula, de Bram Stoker, ou Lucíola, de José de Alencar. Ou simplesmente eram reunidas em volume as correspondências de autores consagrados, de teor geralmente familiar, estético ou amoroso - aqui serve como exemplo a publicação das cartas trocadas entre Simone de Beauvoir e Sartre. Com toda essa tradição do gênero, somada ainda à difusão da escrita proporcionada pelos computadores, não tardaria a surgir um livro composto apenas por e-mails. E feito por jovens, certamente os que dominam com mais eficácia a nova prática de mensagens instantâneas.
        Escrito por garotos, e direcionado a jovens de corpo e/ou espírito, vale como sugestão o livro A Nave de Noé (Rio de Janeiro: Record, 2000. 256 págs.), dos primos Ramos Amado. Luiza, filha de Graciliano, casou-se com James, irmão de Jorge, e assim as duas famílias se misturaram. Não se deve esperar, contudo, que os dez meninos e meninas tenham se preocupado em dar prosseguimento à "alta literatura" dos antepassados. Antes, escrevem informalmente, já que se trata de correio eletrônico.
        Essa espontaneidade das mensagens gera uma boa sensação durante a leitura, principalmente pela exposição das intimidades dos primos, com as quais o leitor facilmente se identifica por estar vivendo ou ter vivido várias das situações narradas. Segredos familiares são compartilhados com o leitor (às vezes acrescidos com cinismos leves: "espero que minha mãe não leia isso" ou "primos, não contem isso a ninguém"), tornando-o cúmplice das peripécias adolescentes, uma espécie de voyeur que se apraz da mera observação do sigilo alheio.
        O fio condutor da história são as especulações sobre o motivo pelo qual outros dois primos, os irmãos Juca e Pedro, nunca se falaram. Em torno giram a ascensão da TPM (uma banda só de meninas), os novos casamentos dos pais separados, o suposto fim do mundo na virada do milênio, além de todo um universo de fatos característicos da faixa etária dos autores - de treze a dezesseis anos. Tudo isso escrito com muita graça e despojamento.
        Alguns momentos são especialmente divertidos, como as mensagens de Bel, cujo computador não possui acentos nem cedilha, falha que ela mesma converte em elemento construtor do texto: "Mas aih jah viu, neh?"; "Ve se voces me dao uma forca - se for sem cedilha, pode ser para a minha mae". Ou as reflexões criativas de Caco: "No Brasil, ninguém se preocupa com uma grande banda feminina. O povo tá ligado é numa grande bunda feminina. (...) Incrível como uma simples letrinha faz tanta diferença".
        "O humor nos fez mais jovens, com vontade de brincar e fazer arte", afirma um dos primos na apresentação, revelando que o livro é antes de tudo uma aventura lúdica da linguagem. Escrito a distância por dez cabeças e cem dedos, A Nave de Noé vem alegremente nos lembrar de que a literatura estará sempre conjugada com os novos meios, já que o avanço tecnológico é só mais um suporte das experiências humanas.